Calundu

Quando conheci Patricía, não sabia que durante tanto tempo ela participaria da minha vida. Ela era bonita, fazia parte de outro mundo que não o meu. Mesmo assim tinha coragem de olhar e ficar com sua imagem roçando minha cabeça. Morava na casa mais bonita da cidade, seu pai tinha o carro mais bonito. Eu morava na merda, perto das tabocas, sem um puto. E nem sonho eu me atrevia a ter.

Ela estava sempre bonita, carrega de apetrechos e de historias que todos os babacas adoravam ouvir, as festas, as fotografias de viagens, mostradas a toda escola. O charme incansável que mais me machucava que dava prazer. De todo modo olhava no recreio, olhava indo embora, olhava dançando, Entrando no carro e dando beijo em sua pai.

Estudei com ela durante o primário, depois de um intervalo, voltei a encontrá-la na oitava serie. Quando criança chegamos a sentar na mesma carteira, a conversar, mas daquele jeito inocente que as crianças conversam, que quando ficamos grande não conseguimos mais. Ela foi crescendo e já não conseguia falar nada pra ela. Mas no meu intimo eu sentia que ainda existia dentro dela.

Não aproximava. Salvo quando na educação física, cruzava em algum exercício. Lembro que foi a primeira a namorar. Na casa dela era normal as meninas namorarem cedo. Ela já tinha catorze, namorou um menino de fora que ficou pouco tempo na cidade, mas o suficiente pra massacrar os outro garotos que corriam atras dela. Eu tinha meu sofrimento, mas dentro, quieto, cheio de orgulho.

Mas nunca fui otário de deixar a vida dos outros tomar conta da minha. Tinha essa névoa distante, mas meu mundo prosseguia ao modo como eu suportava. Na minha casa, que como disse, perto das tabocas, logo na frente tinha o lixão da prefeitura. Aquele cheiro nojento de podre e azedo afundava a gente dentro de casa. Não podia ficar do lado de fora, as janelas ficavam fechadas. Só a porta do fundo que ficava aberta, porque o vento daquele lado empurrava o cheiro insuportável que rondava nossa vida.

No quintal, minha mãe trabalhando, lavando roupa pra fora, o gramado coberto de lençóis. Entre uma trouxa e outra, o choro dela perturbando nossa paz. Faz alguns anos que meu pai foi embora, e ela nunca se recuperou. Aquilo me matava. As vezes saia pra fora, ia ao rio, passava pelo lixão e siguia adiante. Só pra não ouvir aquele choro que não vai embora nunca. Ficava rodando a vida dela como o fedor que vem da imundice do lixo.

A ultima vez que vi meu pai, foi quando minha mãe jogou todas suas roupas no quintal e jogou fogo. Misturou querosene e riscou um fósforo. Exagerou daquela vez. Ela sabe disso. Talvez por isso chore tanto. Ele não sei onde anda. Não tenho saudade, era um merda que só dava trabalho e arrumava confusão. No fundo gostei quando foi embora. Não aguentava mais aquele traste dentro de casa fazendo ela sofrer.

Nessa época Patrícia terminava o primeiro grau. Nem sei porque falo tanto dela. Mas em fim, terminava e como todo filho rico daqui, viajaria pra longe, geralmente salvador, some, passa uns anos fora e volta mais estranho ainda, carregado de uma superioridade que deixa a gente menos ainda. O bom é que não ficam, não suporta mais esse lugar depois de conhecer outros.

E houve uma grande festa de despedida, muita gente, muita bebida e churrasco, a praça ficou tomada de gente. Passei perto, queria ver quem estava. Estava ali os de sempre: Os ricos, os felizes, os que tem roupa boa, e um sorriso bonito na cara. Se antes não tinha nada, agora mais nada ainda, porque nem o jeito dela bonito no intervalo eu teria no próximo ano. O que me salvou foi que a partir desse fato, ganhei um gosto exagerado pelos estudos. Uma fome terrível de sabedoria me amassava as entranhas. Isso me fez estudar mais e mais. Por uma razão inexplicável, me dei muito bem em matemática, tudo ficou claro, descobertas tomaram minha mente. E aquilo me dava prazer e satisfação. Também me dedicava ao português e história. Passei a freqüentar a casa dos ricos, uma vez por semana. Dava banca, passei a ensinar os filhos estúpido deles a resolver inequações e geometria. Sentia especial. Me davam café, um pouco de atenção. Eu preparava os filhos deles, deixava mais afiado pra não passar vergonha quando fosse embora.

Foi nesse tempo que patricia voltou. Continuava bonita, mais bonita ainda. Só que agora parecia mulher. Conseguiu crescer e os cabelos negros escorridos, deixava ainda mais bonita, quando passou de bicicleta na praça. Deu uma sorriso. Olhou de verdade pra mim. Aquilo me deixou encantado e bobo, queria conversar com ela. saber mais. Nem parecia gente de verdade a beleza dela. Não liguei para minha eterna inferioridade. Segurei aquela intensidade. Segurei firme e não deixei qualquer sentimento de auto desprezo tirar da minha percepção aquela mulher de bicicleta. E ela continuou bonita até dobrar a esquina da igreja. Pedalando e rindo com sua imperícia. Voltei pra casa estufado de tanto amor.

O que me salvava a vida da completa perdição era, apesar do fedor, minha casa. Minha mãe, mesmo com a depressão, queria se mostrar feliz. Todo dia cobria a mesa de feijão gostoso, ovo frito com sal e um arroz soltinho , que apenas ela fazia daquele jeito. Quando tinha salada ria e eu compartilhava de sua alegria. Comíamos os dois, sem dizer muita coisa. Ela vivia num lugar secreto. Eu não queria perturbá-la de seus sonhos, de modo que o silencio que tinha em casa era manchado de coisas não ditas, não faladas, mas que estava a todo tempo no ar, dando horror a nossa intimidade.

Me ocupava a maior parte do tempo estudando, lendo, pesquisando coisas na biblioteca. Quando mais eu estudava, mas aprendia, e os ricos da cidade me respeitava, me dava dinheiro, e me olhava com outros olhos. Ensina os filhos deles. Tirava da mediocridade que sabia ter nos estudos. Por alguns momentos, quando esquecia de mim, tinha uma sensação de pertencer àquelas vidas.

Um dia chegando em casa, com a mão no nariz de tanto cheiro ruim, fui ao fundo da casa, os lençóis cobrindo o quintal como sempre. No canto minha mãe estava caída, ainda com o lenço na cabeça. Corri até ela, o boca de espuma dava os últimos espasmos. Morreu nos meus braços. Fiquei muito tempo do seu lado olhando seu corpo morto do lado daquela roupa que ainda estava suja.

No enterro, o caixão pobre e esverdeado deixava mais entalado ainda. ganhamos aquela merda da prefeitura, num programa de ajuda aos miseráveis. Claro que eles não davam esse nome, mas era assim que eu me sentia enquanto minha mãe era enterrada.

O dinheiro que ganhava, mal dava pra comer. A maior parte de tempo ficava trancado dentro de casa. Lendo minhas coisas ou deitado no meio da sala contemplando uma lasca de sol que descia pela telhado, um lugar que quando sol, dava luz, quando chovia emporcalhava a casa. Nunca consertei, porque de alguma forma através daquele buraco algo de fora acontecia.

Logo depois, uma moça não muito bonita, filha de um fazendeiro começou a freqüentar minha casa. Aprendia matemática com dificuldade. Toda tarde estava lá, trazia livros novos e muitas vezes comida de sua casa. Me deixava constrangido, ao mesmo tempo, muito tranqüilo. Praticamente não precisava comprar nada pra comer. Todo dia, pão, bolo , almoço pronto. Mas o aprendizado mesmo não prosseguia. Uma tarde que estava muito bonita, a casa toda fechada e o buraco no telhado criando penumbra, ela pegou na minha perna e eu deixei. Fiquei sem ação, nunca tinha tocado numa mulher. Pegou minha mão e colocou em seus seios. Fechei os olhos e deixei ela usar minha mão para se acariciar. Logo levou minha mão até sua boceta. Enfiei o dedo pelo lado da calcinha. Ela me encheu de mordida. Minhas costas ficaram marcadas de unha. Minha boca sangrou o lábio, enquanto pulava como uma égua no meu colo. Nunca imaginava que ela soubesse tanta coisa.

Nunca mais apareceu para as aulas. Não perdi muito tempo preocupado com isso, apesar de gostar da comida que trazia e da experiência sexual que não esperava dela. Não me lembro o que lhe aconteceu. Tudo indica que foi embora como faz todos que podem seguir adiante depois dos estudos.

Passou algum tempo, meu pai voltou, procurando minha mãe. Entrou num desespero quando soube que ela havia morrido. Se dizia culpado e que agora compreendia as coisas, pois aprendeu muito enquanto esteve fora. Dizia aquilo

E eu não sentia nada. Apenas a vontade de empurrar ele pra fora de casa e nunca mais olhar em sua cara. Ficou ainda uns dois dias em casa. Naquele período não tive vontade conversar. Quando ele abria a porta eu fechava logo em seguida. Mantinha do mesmo jeito a casa fechada e á tarde, me espalhava no chão. Ele se sentia humilhado em não abrir a própria casa. Não me importava. Ele não agüentaria tudo que eu tinha pra dizer. Dessa forma ele evitava o confronto.

Acordei numa manhã e sua mala já não estava lá. De novo partiu. Fiquei triste quando me dei conta. Um tanto culpado e mais sozinho. Procurei um bilhete, um recado, nada. Sentei no sofá e olhei as paredes. Verdes há muito tempo, descida de marcas de tintas que escorreram. Olhei aquilo bastante tempo. Abri a janela e não tive dificuldade de tolerar o fedor do lixão. Lembrei de meu pai que voltou acabado e querendo de novo minha mãe. Dei conta que também queria minha mãe. Nunca parei pra chorar por ela. É como se ainda não tivesse perdido ainda. Aquela senhora sempre labutando, de lenço na cabeça, no quintal morrendo o dia de hoje e morrendo também de toda bosta que viveu. Chorei quando lembrei dela, chorei pra dentro, tossindo pra dentro, como se tivesse um murro dentro do estômago, socando e cortando minha carne. Nesse dia me dei conta, que precisa ir embora e nunca mais voltar.