O último olhar do condenado não é sentimentalmente por lágrimas
nem iludido por visões quiméricas.
O último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê o frêmito da última folha no alto daquela árvore, além...
Mario Quintana


 
a solidão do homem

 
Eu dirigia pela RJ-125 sem saber pra onde; ele vinha num sei de onde, ia num sei aonde. Caminhava sozinho. Um trapo, isso era evidente. Carregava uma garrafa. O cabelo completamente desgrenhado, sujo, rosto rugado, grelhado; sem camisa, magro, calça rasgada e imunda. Patético. A pé, andava pelo canto da estrada. Na mão direita, a garrafa; na esquerda, guimba de cigarro. O homem chorava, chorava muitas lágrimas. Ia andando e chorando, o homem de uns quarenta e tantos anos sozinho ia andando pela estrada, devagar, chorando. Não caminhava, perambulava.
  A cara queimada pelo sol (ele devia estar andando há dias, anos, séculos talvez). Às vezes parava e bebia um gole daquilo morno, acendia outro cotoco de cigarro largado na estrada. Andava chorando lágrimas que se misturavam com a imundice poeirada, suada, sem olhar pros carros que vez e outra passavam por ele sem se importarem com ele; ele sem se importar que o vissem ali, exposto.
  Olhei pra ele; ele me olhou mas não me viu — não via ninguém, nada. Tão voltado pra si próprio, via pra dentro: trabalho?; renda?; filhos?; amor? Sentia a sua dor sozinho. Deve ter passado o Natal e também passará o 31 andando sem rumo, sozinho e chorando, bebendo e fumando restos de cigarros dos outros.
Sem recurso nem nada, na merda, pela estrada ele deve escolher uma pirambeira e no alto uma árvore, uma árvore bem bonita, vai subir e amarrar seu cinto de plástico, amarrará o cinto num galho bem firme e em seu pescoço, e então pulará... Ou, estando de corno cheio, vai despencar nesse rio que margeia aí por onde anda e bêbado afundar sem nem se debater... Pra quem, pra quê! É, é isso que deve acontecer.
  Vendo esse homem, olhando essa cena, comecei a me sentir menos acabrunhado. Minha dor comparada com a dele... Eu me senti ridículo, minha alma é ridícula. Tenho dois lindos filhos e pais que adoro, uma labrador e um vira-lata bem simpáticos, uma casa, amiguinhos que beijam flores... Me adoram — acho, estão sempre por perto, juntos a mim.
  Fui dirigindo mais tranquilo, menos angustiado. Estropiado tá aquele homem e mais muitos e muitos homens desse mundão. Lágrimas. Será que alguém conversa com aquele homem? Tentei. Parei o carro e perguntei qualquer coisa, ele me olhou mas seu olhar transpassou o meu. Quem pode fazer com que enxergue?
  Seus filhos, os pais, ou uma mulher, o seu amor? 
  Nunca vi um sujeito tão triste, tristíssimo!

  Manobrei o carro e voltei, passei pelo homem e ele olhava pro nada... Fui, vim vindo meio mais ou menos aprumado, pensando em Schopenhauer, numa coisa q’ele disse em relação a amenizarmos a nossa dor percebendo outros que têm dores maiores (que consolo!), disse qualquer coisa assim... Eu sempre achei essa máxima, isso, sempre achei esse pensamento babaca pra caramba, apenas paliativo, por que as dores são individuais, cada um a sente como lhe dá... Sempre achei isso bobo mas hoje não — hoje aquela dor tão enorme e evidente naquele homem abrandou a minha aparente, ela ficou pequenininha. A dor daquele homem era tão grande, mas tão intensa que a minha pareceu tamanha idiotice, besteira dum classe média.
  Paiol Velho, quinta-feira, 30 de dezembro de 2010.
  Em tempo: dois dias depois, no 1º de 2011, leio num jornal local, no Panorama da Região: “Encontrado às margens da RJ-125, à beira do Ribeirão das Lajes, foi encontrado um homem, um homem com um cinto amarrado no pescoço, a outra ponta a um jacarandá-branco florido. Havia uma garrafa quebrada embaixo dele, ele com os olhos esbugalhados... O homem exalava um forte odor causando horror aos motoristas que por ali trafegavam a fim de passarem a revelry de fim de ano. Essa imagem não é nada-nada positiva à região. Esta cena enfea o bucolismo desta serra que, num grande esforço, a tingimos de anil! O suspeito dependurado pelo pescoço numa árvore tão bonita deveria procurar outro lugar para executar tal ato!”.


 
... E não há melhor resposta que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão de uma vida severina.
João Cabral de Melo Neto

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 19/09/2011
Reeditado em 26/01/2013
Código do texto: T3228152
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