revanche

Quando meu pai resolveu se casar de novo minha mãe perdeu todo o brilho. Eles tinha se separado há uns anos. Desde então ele vivia numa casinha pequena no final da rua. Nunca via meu pai sair pra algum lugar. Parecia um indigente. Passou a viver no sofrimento. Pra ele o mundo tinha acabado. Pra minha mãe, não. Do nada passou a freqüentar o forró de Seu Anastácio, uma vergonha danada. Passava na mão de todo homem que quisesse dançar com ela. Até então era uma mulher muito séria que nunca faria umas coisas dessas. Eu mesmo já vi muitas vezes ela saindo de madrugada pela porta dos fundos, com batom na boca e saia curta. Ela pensa que a gente não sabe. É duro vê nossa mãe fazendo isso!

Meu pai, coitado, perdeu a fé na vida depois da separação, nem tomava mais banho. Se minha vó não mandasse a comida dele, morreria de fome. Já nem levantava da cama, vivia em estado de prostração. Os olhos não paravam de marejar. De verdade mesmo, isso me dava um pouco de raiva, porque nunca achei que meu pai fosse tão mole. Era tão valente em casa quando morávamos juntos. Qualquer malinação que os meninos faziam já dava um cascudo ou olhava feio que doía tanto como um tapa. E agora desse jeito: Como um menino abandonado, que precisa a todo tempo que alguém veja. Pois da medo de morrer amíngua. Quem mais sofre é minha vó que não faz outra coisa a não ser se preocupar com o filho, que era um homem forte e agora parece um talo de capim. Eu fico com pena mais dela do que dele.

Ao contrario dele, a separação encheu minha mãe de vida. Antes andava torta olhando pro chão. Toda humilhada. Vestia umas calças, que de longe, lembrava um rapaz . Passou a ser um raio de sol, se cuidando toda. Não deixava a costureira encomendando saia e vestido curto. E comprou um estojo de maquiagem de gente rica, que deixava a cara dela lisinha e cor-de-rosa. Todo homem atrás. Até moleque novo corria atrás minha mãe. Deus que me perdoe dizer isso, mas parecia que ficou no cio. Nunca vi uma mulher se soltar desse jeito. Até entendo porque meu pai não saia mais de casa. Alem da dor de perder a mulher, o vexame deveria matar ele por dentro. Ele nem podia dar o troco, era só carne e osso, um coitado. Se fosse carnudo e bonito como minha mãe, talvez estivesse na praça descontando, correndo atrás das raparigas. Desse jeito ninguém olharia. Se fosse rejeitado de novo, ai que ele morreria direito.

De tanto minha vó insistir ele aceitou ir ao medico, disse que ele precisava reagir, não podia ficar daquele jeito por causa de uma ingrata. Que tinha filhos pra criar e uma vida ainda pela frente. Ele escutava aquela conversa, mas nem parecia que era com ele. De vez em quando olhava e acenava com a cabeça. Nessa época deu medo de meu pai enlouquecer. Bem que todo mundo já estava falando. A gente que fingia que não era verdade. Mas quando olhava pra ele, esse era o sentimento que vinha, porque ele estava igual João Leitoa, um doido que morava na rua da feira.

“O Doutor disse que é depressão”. Quando contei do exame, ela nem tentou esconder o sorriso. Ficou feliz de meu pai estar tão mal por causa dela. Naquela dia cantou a tarde toda. Quando foi a noite, um homem veio pegar ela de carro. Saiu rebolando: Minha mãe agora parecia uma puta. Não contenta mais com um homem só. É tanto carro diferente que a gente nem pode sair na rua de tão acabrunhado. E ainda tenho que agüentar os sarros de meus amigos, que não esconde de o que acham de minha família.

O médico passou uns remédio pra meu pai. Minha mãe falava que era remédio de doido. Dizia isso só pra provocar minha vó, que se ofendia quando falava mal de algum parente, sofria como se estivesse falando com ela. Quando passava em casa no final da tarde pra pegar a lavagem, a velhinha não sabia nem o que responder com as afinetadas que recebia. Percebia na vó a vontade de pular no pescoço de minha mãe e esganar. Mesmo assim não respondia. A raiva vinha até a garganta, eu via a veias crescer. Mas só derramava a lavagem no baldo e ia embora. Nunca vi uma mulher fria igual minha mãe. E antes não era assim, nem sei porque ficou desse jeito. Se separou e ficou perversa. Todo mal que tinha dentro dela, deixou sair pra fora, e não estava preocupada se machucava alguém. Eu nem chegava perto, porque essa crueldade era com todo mundo. Até com os filhos pequenos que não tinha nada a ver com seus problemas. Ela engolia qualquer alegria que brotasse na gente.

E foi que os remédios começaram a fazer efeito. Já passou a tomar banho. E toda roupa que ele tirava, levava logo pra minha vó lavar. A casa já ficava limpa. Antes era bituca de cigarro e catarro pra todo lado, principalmente nas paredes. Um fedor que fazia o estômago embrulhar. Já ria algumas vezes. Outro dia passou na nossa rua. Não olhou pra dentro. Mas aquilo fez a gente se encher de felicidade. Meu pai agora parecia Jesus ressuscitando, com os cabelos ainda grande desse tempo que ele ficou fora. Passou devagar. Os cabelos encaracolados balançava bonito embaixo do sol.

Fui correndo na casa da minha vó contar pra ela, que baixou o joelho no chão e chorou. Acendeu uma vela pra Nossa Senhora Aparecida e ficou olhando pro fogo até quase apagar. Deu uma coisa boa no meu peito. Vi que minha vó gostava muito de meu pai. Isso me tranqüilizou . Não tinha percebido como essa historia toda mexeu comigo. E logo um milagre foi acontecendo. Aquele homem caído e sem fé foi se levantando. Roupas limpas. Fez a barba. Todo domingo estava no rio tomando sol e ficando vermelho. Minha vó só pra se vingar de minha mãe gastou o que não podia pra comprar um perfume caro e deu de presente pra ele. Contou sem querer que meu pai andava cheiroso. Ele ganhou carne e aceitou a separação. Disse que não pensava mais em voltar e que sua vida estava ficando boa. Que a solidão fez repensar um monte de coisas. Isso lhe deixou forte. Quando vinha buscar a lavagem, minha vó fazia questão de contar pra minha mãe todo esse progresso. Com essa historia minha mãe começou a murchar. Uma estranha matemática eu via acontecer com ela.

Fiquei sabendo que lá no forro já não era a mesma. Foi perdendo o furor. Continuava indo só pra fazer birra. Sentava na mesa e o olhar ficava perdido, sem conseguir ficar feliz com a liberdade. Voltava para casa mais cedo. Depois que ficou triste nenhum homem se interessava em tirá-la pra dançar e nem dizia sem-vergonhices. Ela foi se esmorecendo.

Depois de um tempo não agüentava mais o forró. Ficava em casa, os cabelos de arapuca, e a carne que tinha ganhado na felicidade foi tudo embora. E a coisa ficou pior com a noticia do casamento de meu pai, que agora já era outro homem, deixou tudo pra trás e estava de novo apaixonado. Passava na minha rua varias vezes abraçado a namorada. Passava tanto que já nem me deixava feliz, porque sabia que estava fazendo igual minha mãe, fazendo pirraça. Assim como ela, queria provar que não precisava mais de ninguém. Que a vida agora era muito melhor do que quando era casado. Meu pai era igual minha mãe. Ela passou a fechar a porta. Percebeu que não agüentava ver meu pai feliz, que insistia em aparecer cada vez mais. Mesmo assim, ela queria sustentar uma alegria que não existia mais.