O COMBATE DE UM PIONEIRO

O COMBATE DE UM PIONEIRO

Era madrugada. Eles não tinham relógio. Seguiam mais ou menos pelos galos. Quando estes cantavam, já era hora do chefe da família pular da cama e acender o fogo. Em seguida, a mãe e seus oito filhos. O fogo lambia debaixo da velha trempe, com uma das pernas improvisadas de pedras.

Fazia muito frio em Cascavel. Não era 1952*, mas quinze ou dezesseis anos antes. O mês não se sabe o qual era. Sabe-se que era no forte do inverno. Mariazinha tinha que levantar cedo para cuidar do irmão caçula. Todos em casa iam para a roça, e ela pajeava um piazinho mijão na cama. Embora sempre na hora de dormir era obrigado a fazer xixi sobre uma pedra quente que só exalava mau cheiro, mas efeito que era bom... nenhum.

A irmã não precisava sair na geada para estudar na escola rural da localidade. Logo no primeiro ano aprendeu a ler (muito mal) e a escrever algumas coisas em forma de garranchos. Seu pai sempre dizia com uma voz pacata: “Fiia muié, aprendeu a fazê o nome, chega. Tá bão! Tem que aprendê costurá, cuidá da casa e do marido e criá fiio”. Era só o pequeno que tinha que levantar, tomar café, pegar a merenda (quase sempre eram bolinhos fritos) e ir pra escolinha.

O taquaral era fechado. Dentro do cartapácio carregava uma setra. Antes de chegar na escola, deixava-a escondida no meio dos galhos de uma imbúia grossa, pois a própria professora tomava-a e não devolvia. O que ela fazia? Não, não. Ninguém sabe. Ela falava que queimava a tal de arma feita com elástico (borracha) de câmara de pneu, e uma forquilha de madeira. Outros diziam que dava de presente para o Carlinhos. Esse Carlos, mais conhecido como Carlinhos, mesmo sendo bem mais jovem que a professora, essa mantinha uma certa paixão por ele. Tanto é que anos mais tarde acabaram se casando. Tempos depois, assim que ela terminou a quarentena do segundo filho, ele fugiu com a empregada da casa.

Aparecida dos Portos** era uma terra muito fértil. O padre de Foz do Iguaçu apelidou o pequeno povoado de Encruzilhada da Varanda***, e por esse nome ficou até a sua emancipação.

A bodega do seu Jeca sempre no sábado enchia de gente. Alguns comprando o rancho da semana, outros conversando, outros “enrolando” com um copinho de pinga, outros... Houve algumas vezes brigas, mas felizmente nunca houve morte. Apenas bate-boca e tapas.

O Governador Bento Munhoz da Rocha**** havia prometido revolucionar o Estado do Paraná, principalmente no norte. Até que lembrou da região Oeste. Foz do Iguaçu devido as maravilhas das Cataratas e Guaíra com as Sete Quedas***** (que saudades... ).

Cascavel já estava conhecida. Era onde as pessoas, principalmente do Rio Grande do Sul, vinham tentar a sorte para ter uma vida melhor. Mais um pouco passaria a município. Alguns políticos de Foz não concordavam. O poder estava dividido. Plebiscito? Ninguém nem se quer ouviu falar.

O governador começou fazendo uma boa administração. O projeto de emancipação de Encruzilhada, a já conhecida Cascavel, não era novo. Ele deu continuidade, a vila ia crescendo e povos migrantes foram chegando...

O povoado crescia tirando um pouco do sossego desse valente guerreiro. Os filhos foram se casando. Alguns foram tentar a sorte em outros lugares distantes. Um deles, o mais inconformado com a situação, queria trabalhar e estudar. Foi para São Paulo e nunca se soube se conseguiu se formar. Mariazinha foi a última filha a se casar, e tempos depois o velho pioneiro tinha a felicidade de brincar com os netos. Esta ficou residindo no velho casarão juntamente com sua família. Ficaram morando na mesma casa: seus pais e seu irmão caçula, aquele que anos atrás mijava na cama.

A morte da senhora da casa, como é lógico, trouxe muita tristeza a todos. O caçula ainda estava solteiro. Este fez um propósito de não se casar enquanto seus pais fossem vivos. Após a morte de sua mãe, seu pai começou a ficar doente. Foi definhando. Já não era mais o mesmo de tempos atrás. Para passear no sítio vizinho, tomar chimarrão com o compadre, a mais ou menos quinhentos metros, precisava descansar várias vezes. Quase não se alimentava e dormia muito pouco.

A velha casa grande com uma parte de chão batido que era a cozinha, teria ficado surda sem a comandante do lar. Vale dizer que exatamente onde era essa residência ampla, com varanda nos três lados, hoje passa uma avenida que serpenteia a cidade. Nas suas margens onde havia um pequeno campo de futebol, está cheio de lojas, bancos e outros comércios. Há outras ruas onde existia a invernada. Hoje... só resta a saudade... É o progresso. É isso que chamamos... progresso.

O velho batalhador, mesmo doente, foi colher Feijão da pequena roça que ainda restava. Tossindo muito, sentindo dores e tonturas, mas mesmo assim foi. As plantações nos últimos anos eram só próximos à casa.

O filho mais novo ficou preocupado com o pai. Foi chegando pelo barulho da tosse. Aproximou-se mais... ouviu alguns gemidos e esses foram desaparecendo. Ouvia cada vez mais baixo... Quando viu seu pai caído abraçado com um maço de feijão... ainda respirando, deu apenas um meio sorriso com lágrimas nos olhos. Com o feixe que acabara de colher... parecia feliz e realizado apesar das dores. Como se pudesse pronunciar algumas palavras, falasse: “Combati o bom combate... encerrei a carreira... “ Naquele mesmo instante... adormeceu.

(Christiano Nunes)

* Em novembro de 1952 houve a emancipação

Política da cidade. Até então, pertencia a Foz do Iguaçu.

** O primeiro nome do pequeno povoado, hoje cidade de Cascavel.

***Nome que recebeu quando era ainda vila.

****Foi Governador do Paraná de 1951 a 1955.

*****Localizava-se no Rio Paraná. Era a maior cachoeira do mundo em volume de água. Deixou de existir para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Desapareceu totalmente no dia 27 de outubro de 1982.