Peremptório (outubro de 2011)

Peremptório, amor vulgar

Das coisas confusas da vida,

Canguru.

Peremptório: decisivo, dogmático, irreplicável.

Nenhuma outra linha parecia querer sair da caneta esferográfica azul. Tentou seguidas vezes fazer caírem frases da caneta, mas debruçando-se sobre o papel já sem forças, cansado e derrotado, dormiu. Qual sentido teria escrever frases de um poema que não seria jamais lido? Sim, porque o que esboçava saía sem o princípio ordeiro da poesia de um grande poeta.

Peremptório, eis a palavra que não queria sair da cabeça e que dormiu com o autor, ao desabarem ambos (palavra e criador), sobre a mesinha do escritório – como resultado do profundo cansaço. Passava-se da meia-noite de uma quarta-feira e podia-se ouvir Helena serenamente suspirar enquanto seguia remexendo-se na cama do cômodo ao lado.

Na penumbra, com o auxílio de apenas uma vela, Roberto escrevia. Não estava mais corrigindo as provas de suas turmas de ensino fundamental, não fazia nenhum plano de aulas a esta hora da noite, mas esboçava poesias sem sentido, do tipo que satisfaz apenas seu autor. “O exercício de fazer poesias é a maior preciosidade que pode um professor produzir” Pensou.

Já lhe havia dito a esposa que ele não tinha tino para poesia, mas Roberto compreendia de Helena que ela de fato, o invejava. O time de poetas era um time basicamente masculino e, portanto para ela, exclusivista. O time dos poetas era um time onde as meninas não entram. “Apenas os meninos entram no clube da poesia.” Helena teria lhe confidenciado um dia.

Em sua profissão de professor, não faltavam professoras de português ou de literatura – o que fazia com que ele, Roberto, se sentisse o único possuidor masculino de uma das mais belas ocupações do mundo: as letras. Gostava muito do que fazia e, embora não lhe servisse para a sala de aula, via a poesia como um complemento e como mais um motivo de orgulho seu.

Helena lecionava matemática em uma escola vizinha à escola onde trabalhava seu marido e, a esta hora da madrugada, diferente de Roberto, dormia o sono dos justos. Ambos começariam cedo no trabalho, mas seu marido resistia bem mais a uma noite sem sono do que ela. Acordando do pequeno cochilo sobre o papel e caneta, Roberto de pronto levantou-se.

Peremptório era a palavra que ainda pairava no ambiente. Mal sabia o significado da palavra, mas sentiu que a oportunidade de escrevê-la em uma folha de papel o agradaria, e assim o fez. A este ponto da noite, não sabia mais acerca de que divagar: a noite de sono perdida, ou a poesia com a palavra estranha? Havia a noite escura e a palavra difícil. Lidaria com as duas.

O sono de Helena, que imitava o ruflar de asas de borboleta, era algo que o acalmava porque trazia paz ao ambiente. Não imaginaria sua esposa que, na madrugada, Roberto estava refém de uma palavra capturada no ar e registrada na vigésima página do caderno de poesias. Helena preparara um chá de melissa para Roberto lutar contra a insônia. A melissa é tranquilizante.

Em cima da pia da cozinha, havia uma pequena garrafa térmica com o chá. Helena aprendera com a mãe a preparar o chá de melissa para o alívio das tensões. A melissa é às vezes confundida com a erva cidreira, pois têm a mesma aparência e finalidade. É, por diversas vezes, vendida como erva cidreira – mas, seria cidreira uma palavra peremptória?

Como discutir o significado de ‘peremptório’ se ainda não conseguia exaurir os significados da erva melissa que estava ali à sua frente, na cozinha? Encontrou semelhanças entre os dois: algo é peremptório devido à qualidade de imutável, de definitivo, de significado dogmático. O chá de melissa era peremptório, sem dúvida! E peremptório era o sono que sentia aproximar...

Tomou metade do conteúdo da garrafa térmica e bocejou. Várias são as plantas que levam o mesmo nome: o capim limão se transforma em cidreira, melissa transforma-se em cidreira, e capim cidreira torna-se apenas (!) erva cidreira. Em todos os casos, o nome do chá recebe um mesmo rótulo dogmático, imutável e definitivo: Cidreira. Sabe-se o que é cidreira, e pronto!

Para o Roberto poeta, o amor vulgar era o maior exemplo do peremptório do mundo. O amor vulgar é aquele que é facilmente perecível por ser inflexível – julgava ele a princípio que, perecível e peremptório guardavam alguma semelhança linguística – e trocara erroneamente um adjetivo pelo outro. Mas, é o amor vulgar? O que teria este em comum com um canguru?

“Para dormir, enquanto uns contam carneirinhos, eu conto cangurus” – dizia sempre Roberto. Qual o significado do Canguru na poesia? Aparentemente apenas um exercício de retórica, e nada mais que isso? Agora ao lado da cama do casal, o marido puxou de leve o cobertor e deitou, acomodando o braço suavemente sobre Helena. Deu-lhe então um beijo e dormiu.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 12/10/2011
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3272806
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.