DESTINO HUMANO

Pela ampla janela da sala ela podia ver parte do céu, uma montanha de um azul quase se confundindo com o céu quando este estava azul, mas naquele dia o céu estava cinza, embora junto ao risco quase azul da montanha arrebentava-se uma fimbria dourada que devia ser o sol no seu ocaso afinal.

Balançava-se na cadeira, ouvia o rangido, de muito longe – como se parecesse ser na parede ao lado esquerdo – um roedor, que talvez fosse, ou melhor, que fosse um rato. Estava tão alto no edifício que o som- que supostamente vinha lá de fora – produzia-se num eterno vum-vum num vácuo correndo. E nada a perturbava porque ela era esta criatura dócil, entregue ao devaneio derradeiro da existência. Há muito tempo deixada ali, olhando a transformação do céu e da montanha, sua irmã, nas cores do clima como se fosse de humor a humor a mudança que outrora ocorria dentro daquela sala, na porta daquele quarto que se batia, de um impropério que se vociferava, no chiado da frigideira, na alegria dos abridores destampando as garrafas. E se aconteceu noites – por que via também por aquela mesma janela – em que aquele mesmo céu estava iluminado por luzes irisadas, e rolhas explodia em todos os cômodos, e lá de baixo vinha mais que o vum-vum que se ouvia agora, ouvia-se estalidos, regozijos. Não havia nada parecendo roer a parede contigua. Nem mesmo se sabia se alguém martelava um prego a parede oposta.

Uma grande massa cinza e homogênea, acima do recorte azulado de montanha, cobriu a fimbria alaranjada que lutara para se romper. Mastigou a dentadura; de um impulso mais violento balançando mais firme a cadeira tentando com isto alcançar finalmente os momentos perdidos. Esquecidos aonde? E lançou um olhar vazio e esgazeado em torno de si, pelos moveis estáticos, de um negro já baço. A moça que limpava e deixava a comida pronta vinha três vezes na semana; fungava muito, falava num tom afetuoso como de uma mãe para uma filha com ela, e ela achava engraçado, com seus olhinhos miúdos quase perdidos no rosto enrugado já despreenchidos das expressões. Era como se sempre houvesse alegria na sua face, uma alegria estupida e fútil como convinha a toda alegria. Então ela chegava à finalidade da alegria que almejara durante toda existência, sem saber, nem colhê-la aos poucos como acreditou ter feito com o amor. Com o amor ela tratou como a poeira que limpava sempre dos moveis, hoje um pouco abandonados. Se teve ou deu carinho aconteceu como uma musica que ouvia, ouvia e nunca aprendia, apesar de gostar. Por isso, assim na solidão, ela sacudia os ombros num grande gesto de pouco caso. De que adiantara afinal? Agora era esse quadro todo dia. A dificuldade de ir até a cama, arrastando os pés artríticos em chinelos velhos de pano, ou para ir ao banheiro. Se acontecia de se despejar pelo caminho não tinha mesmo a quem a censurasse, e ria de si mesma, um riso magro, seco, com asco da vida, mas cheio de garras como um lodo agarrado a pedra junto ao riacho.

Um dia foi alguém ínfimo, mas de um ínfimo dócil e fresco, inocente, que podia correr por um prado verde sem medo de topar numa pedra. E sempre foi de achar graça e chorar com encenações em ambientes fechados. Preferia a solidão, mas conjurava companhias arrebatadoras que a levassem dali onde sempre se sentia presa, reclusa.

Amar sempre foi como quem trata os moveis da poeira. E por isso casou-se, mas depois de algum tempo em que filhos vieram não se lembrava todo dia que estava casada, que precisava de um homem, mesmo que ele estivesse com ela na mesma cama. Passou a achar bom que quase não parasse em casa, o mesmo se sucedeu com os filhos, e quando se arranjaram, ela disse finalmente, e nem chorou muito a solidão após a morte do marido. Tinha aquele apartamento, um carro que depois vendeu; a pensão do marido. Acabou por se convencer, e aos poucos fingia reconhecer os familiares que tão pouco vinha visita-la.

E agora era aquela noite, imóvel, balançando-se naquela cadeira embora, mastigando a boca sem dentes.

Talvez acontecesse tragédias, paixões, alegrias efêmeras. A vida lá embaixo talvez fosse uma gafieira. Mas nada mais importava. Convencendo-se percebia que nunca importara. Fora uma sequencia de fatos equivocados, famintos embora, sedentos pela vida, pela beleza e pelo êxtase.

E acabaria, sem lembranças, sem vestígios, sem poeira. Reclusa na solidão sob a terra. Desse modo recostou-se bem na cadeira, deixando-a inclinada; fechou os pequenos olhinhos, os lábios desapareceram dentro da boca murcha. De longe, dir-se-ia ser uma folhinha seca abandonada ali.

Não sentia mais nada. Nem o vento intruso sempre entrando pela ampla janela aberta cujas cortinas rotas e empoeiradas fez esvoaçar.

E percebeu-se viva vazando-se como um animal inanimado sem mais forças, e deixou livre os grunhidos do pensamento que adiavam a morte.

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