cavalo-de-pau

Não havia mais nada a fazer. O velho Domingos tinha morrido. Minha vó até chorou, mas de Respeito porque daquele troço ninguém gostava. Foi assim que ela disse com lágrimas nos olhos. A gente foi montado num cavalo que ganhei de meu pai. Um pangaré que mal conseguia andar. Eu nas rédeas e minha vó atras, apertando minha cintura com medo de cair.

No velório, estava todo mundo lá. O velho no caixão, o narizão apontado pro teto. Ainda parecia poderoso mesmo morto. Um fedor de vela no nariz da gente. Minha vó falou que ele muito ruim, por isso encheram a casa de vela. Todo canto que se olhava tinha uma acesa. Só pra garantir que não fosse direto pro inferno.

Dona Vilma, a viúva, servia doce pra todo mundo, uma cara sóbria. Nem parecia que tinha chorado. Confortava outras pessoas dizendo que a vida era assim mesmo. Que todo mundo já esperava o pior. Várias pessoas estavam ali só pra comer. Estava comendo e de olho no que ainda tinha. E veio muita gente que só aparece nessas horas de morte ou de casamento. E apareceu umas mulheres, que minha tia jurava de pé junto que era amante do velho, porque toda semana mandava alguém levar compras da cidade pra elas. E todo fim de ano ganhava copo de vidro e vestido novo. Mas ninguém era doido de dizer isso a céu aberto. Porque na certa seria chamado pra conversar pra se explicar. Então a gente não tinha certeza de nada. Tudo era fofoca. Tinha duas delas. Todas muito tristes e chorava de verdade, de ficar vermelha. Dona Vilma ou estava fingindo que elas não estavam lá ou não deu ligança pra não deixar o mal crescer.

Um desses que veio foi o irmão do defunto, um tal de Abdias, que eu nunca ouvia falar. Brigou com ele já fazia mais vinte anos. Assim minha vó falou baixinho pra minha tia: “Nessas horas a gente esquece de toda mágoa”. Mas mesmo esquecendo a ofensa, não foi uma única vez olhar o desgraçado no caixão. Conta que ele roubou a mulher do irmão. Por isso nunca se falaram. Confessou para meu tio que veio só pro povo não falar nada. Aqui por essas bandas não tem coisa que assusta mais do que a língua dos outros.

E minha vó olhava insistente pro morto, de palitó. O bigode imenso cobrindo os lábios, as mãos descoradas, cruzadas sobre a barriga. Ninguém teve coragem de cortar a unha do velho que estava grande e suja. Ela olhava e mexia a boca. “O que a senhora tá falando pra ele vó?” “Nada, . Só umas coisas que era pra eu ter falado quando ele estava vivo”. Depois quando disse isso, olhou assustada para os lados com medo de alguém ouvir. É que desde que o marido de minha vó morreu trabalhando na fazenda dele, nunca recebeu nenhum dinheiro de recompensa. Só enganava ela com corte de pano e saco de farinha. Ela não tinha outra vida

a não ser excomungar o velho Domingos. Acho que ela chorou até porque não vai poder chingar mais. Não por falta de vontade, mas de medo de ser castigada por Jesus. Por continuar xingando quem não está nesse mundo pra se defender.

“Deu trabalho danado dar banho nele’. Seu Porto se vangloriava. Ficamos sabendo que nenhum filho teve coragem de preparar o pai, que ficou morto jogado na cama por quase 5 horas. Todos esperando que alguém tomasse pra si a responsabilidade. Ninguém tomava as rédeas de lavar o homem. Até que seu Porto veio e fez o trabalho. Mas o povo disse que ele cobrou duas novilhas pra fazer isso. Um homem tão temido quando vivo e quando morre não tem importância nenhuma.

Nos fundo as cozinheiras não paravam de trabalhar. Era gente chegando, muito frango cozido, que dava nojo de ver as pessoas comendo com tanta apetite num velório. Mordi uma asa e corri pro quintal com as tripas saindo pela boca. E foi lá que vi uma conversa que me deixou assustado. Vários dos filhos discutindo com que parte cada um ia ficar. Até empurrão teve. Deu até dó no defunto, parece que não era nada importante. O povo só tinha medo do velho, nenhum respeito.

A única lembrança que tenho forte dele. Foi uma dia quando foi chamar meu pai pra arrumar uma cerca. Eu estava correndo de cavalo-de-pau. Ai ele apareceu na minha frente. Tinha um cavalão branco de crina

bem grande. “Cadê seu pai, infeliz? ”. Ai eu disse que estava no rio pescando. E foi que ele tirou uma nota de dinheiro e me deu. “Toma aqui. Já tá na hora de montar um cavalo de verdade. Na sua idade eu já galopava por essas mangas. Diz pro seu pai que passe lá na sede quando voltar. Quero falar com ele”. De tudo de ruim que as pessoas falavam não me abalavam muito só por causa desse dia.