Dia da mãe preta!
"Dia da mãe preta!" Ficavam puxando o saco das autoridades que lhe davam porradas. O criouléu só servia para as revoluções inventadas em nome deles e do trabalhador que nem entendia direito por que as bombas caíam sobre suas casas. Esses almofadinhas do jornal sabiam disso, não? "Dia da mãe preta." Achava uma merda. Bom, tanto fazia como tanto fez. Não era de falar naquilo que não pensava. Conhecia seu lugar, mas se alguém viesse para cima dele, não era negro de se aquietar, não. Dava-lhe um tapacu até sangrar. Levar desaforo de branquelo? "Só tenho para te dá a bala do meu rifle;/a ponta do meu punha." - Não vai acordar Sinhá, nego! - Era assim o canto cangaceiro. Ou parecido. Troço antigo. E hoje, em São Paulo, revolução de novo. Os mesmos militares de 1924, agora no poder em São Paulo, dando porrada nos paulistas contrários. Conseguiram dessa vez, voltaram seis anos depois babando para se vingarem, e até quando? Os paulistas iriam conseguir se livrar dos milicos? Dessa vez, eram eles os legalistas! Joviu? Iriam bombardear São Paulo? E paulista foge para onde? Para o Sul? Para o Norte? Para o Paraguai? Ia querer ver isso? Não. Para ele, essa merda de revolução e guerra, nunca mais. Dia da mãe preta! Negócio de crioulo metido a besta. E ele com isso? Largou o jornal sem fazer barulho para não acordar Sinhá e foi ao banheiro. Mijou aliviado quase um litro. Sacudiu o saliente. Ficou olhando seu orgulho, tão perdido em pensamentos, nem soube quanto tempo ficou assim meio dormitando em pé, apoiando os joelhos na privada, os braços na parede e a cabeça neles, assuntando e bestando como um negrote. Os nomes do seu orgulho Sinhá gostava de ouvir e de chamar, repetia como um cantador repentista: "birimbela, pinguelo, rola, pimba, pomba" e outros nomes bestas. E ele a racha dela: "preciosa, toca, greta". Riam disso. Pois é, "seu" Tonho, de família só Sinhá, e estava bem afamiliado assim. Cansado dessas bestices de mãe preta e clubes de negros e revolução e o caralho do monsenhor. Era assim mesmo. Pensar demais na vida cansa. Voltar para cama era melhor. Sua "família" o esperava. Apagou o sorriso que despontava ao ouvir o barulho característico da porta da rua se fechando. Sacudiu de novo o saliente e, ao virar-se para sair, bateu no nariz o odor catinguento de desconhecido por perto. Retesou os músculos das pernas e braços, pronto para o bote ou para a fuga, como bicho instintivo. Perfilou na porta entreaberta, espiando. Viu dois broncos já entrando no quarto, olhando tudo sem querer fazer barulho. Um preto buchudo e um branco bufento, cochichando entre eles, caçando com atenção. De orelha e olhos acesos, ferrou os dentes e lembrou num estalo da faca enterçada escondida debaixo do colchão. Amiga sempre disposta para um "chega-pra-lá" nos inimigos também dispostos. Ladrões? Ou da lei? Macacos não tinham a catinga destes. Nem a fuça. Escondeu a sua detrás da porta, aguardando oportunidade. Assim, em pêlo, sentia o abafamento do desamparo, boca amargosa aumentava insegurança, mas estava disposto a vender caro lá o que fosse os dois estavam querendo comprar. E, à guisa de pagamento, a lambedeira de palmo e meio de um e o facão do outro garantiam disposição de compra.
- A vaca tá dormindo, cadê o preto sujo?
Assinalou na direção do banheiro, o preto. Cuidadoso, vindo na sua direção, o branco. O outro se apartando, desapareceu da visão. O bafo chegou perto entrando pela fresta da porta semicerrada. Apertou-se detrás dela, segurando respiração, entreabriu os dedos dos pés preparando pulo de gato selvagem, , fechou os punhos até afundar as unhas nas palmas, alargou as ventas. A mão do outro segurou a borda da porta, viu as unhas sujas tão perto da cara que arreganhou os dentes disposto a arrancar pedaço. O desconhecido terminou de abrir a porta encostando de leve no corpo, teve de se apertar ainda mais contra a parede.
- Aqui num tá - garantiu ao outro, encostando-se no batente da porta escancarada.
- Se tivesse cê já taria morto, sua besta! Deve ter saído para comprar alguns teréns. Volta logo. Deixar sozinha uma cadela gostosa como esta é que num vai. Nuinha e eu na pindura.
- Que tá aprontando aí, Moitão?
- Quem anda com preto só pode ser puta. A madame aqui gosta de preto. E eu sou um, uai!
- Deixa disso, nego, óia, o crioulo vai aparece pra já.
- Ué, cê faz o serviço assim que assoma o nariz pela porta. Tição de merda precisa de dois, não. O pato preto, assim que vê a gente, vai se cagar todo. E eu tô ocupado agora. Tá com medo do preto, Corintiano?
- Medo, eu? Já meti faca nas costas... nos peitos de muito preto safado...
Magda acordou murmurando: - Que está fazendo'.' É amigo dele? Aonde ele foi? ...
- Nem amigo do chifrudo! Eu como quieto as putas deles, então fecha o bico e abre as coxa, vai vê só o que tô querendo fazê. Vem cá, branquela. Assim, abre bem que minha rola tá queimando. Coisada mais boa... te mexe bem. Tá gostando que é uma lindura, não é puta?... Corintiano, seu merda, tá olhando o quê? Vai fica de tocaia na porta da rua, infeliz. Pode ir esquentando, depois vai sê tua vez... assim, mulher! Aperta mais. Te mexe, sacode essa bunda!
O chamado Corintiano foi se afastando do banheiro em direção à porta do quarto. Sem deixar de olhar para a cama, arrumou o saco entre as pernas. Tão compenetrado com o espetáculo, nem percebeu alguém saindo de trás, acocorado junto com a sombra, e deslizando nos calcanhares com silêncio de gato e prontidão de pulo, sem contudo deixar de vigiar o outro homem. De relance, enxergou-o em cima de Sinhá, com as calças enroladas prendendo os tornozelos e bunda de fora, saracoteando desvairado. Ela em silêncio, garra cravada nas costas dele, parecia estar gostando: "Que tipa, essa mulher!" Antes do Corintiano chegar à porta, ainda sem tê-lo visto abaixado atrás dele, grudado no chão, desembestou numa corrida relâmpago e em dois pulos chegou até a cama, certeiro meteu a mão debaixo do colchão e retirou-a como raio já empunhando a faca. O chamado Moitão ficou apalermado, sem atinar nada, deu uma olhada no seu membro no instante de alcançar a culminância. Parecia saber ser o último: gozou entre as pernas dela ao mesmo tempo da garganta ser furada de lado a lado. Com movimento brusco fez a faca sair pela frente, rasgando a cartilagem da tiróide. Pendurado por fio de veia, o pomo-de-adão converteu-se em torneira por onde o sangue, saindo em golfadas, espalhava-se sobre a cama, lambuzando o corpo de Sinhá. Horrorizada, sufocando grito, apertou a boca com as mãos; a cabeça do caipora pendeu para um lado, depois para o outro, num sinal inútil de negativa. Procurando com o olhar o autor daquilo, esbugalhou os olhos tentando fixar a figura inquieta e anuviada ao lado; esta desembainhou a faca da garganta e, veloz, voltou a enterrá-la, agora num dos olhos aboticados que o miravam. Tudo tão rápido que o tal Corintiano, apoiado lá na porta, mal pôde limpar o fio de baba pendurado na boca aberta ao ver aquele demônio preto, nu e enfurecido furar o outro olho do companheiro, sempre o vigiando de esguelha. Concordou com sua covardia: aquilo era muita fúria para seu saco nessa hora murcho, e só pensou em sair dali. Para já. E o fez aos trancos, cozinha, portas e barranco abaixo.
O "demônio" viu pelo canto do olho apenas o rasto difuso da fuga desembestada, enquanto arrancava a faca do último olho do inimigo. E Sinhá, imóvel debaixo do corpo ainda convulso do negro já morto, parecia estar dormindo na poça de sangue se espalhando como lençol de seda vermelha, cobrindo o semblante, grudando as grandes pestanas. Ensangüentando o verde de seus olhos.
(Fragmento do romance publicado, "A Cena Muda")