As asas do beija-flor

* As asas *

Era uma dessas tardes de início de verão, três ou quatro dias para o Natal, por volta de umas cinco da tarde, que Ana Alice, enquanto caminhava sozinha por um pequeno bosque, numa pequena cidade do interior, tendo um livro embaixo dos braços, encontrou caído no chão de grama alta, um beija-flor, lindo, colorido, morto. Abaixou-se e pegou o pobre pássaro, estático, frio, sem nenhum sinal de que fora abatido por uma pedra arremessada por algum estilingue. Pelo contrário, seu corpo continuava intacto, sem nenhum ferimento, com sua penugem azul-marinho misturado com um verde claro em alguns pontos e mais escuro em outros. Ana Alice se lembrou de ter lido certa vez em algum lugar, ainda quando criança, que os beija-flores chegam a bater as asas 90 vezes por segundo. Sempre achou aquilo incrível, ficava um tempão olhando aqueles pássaros bebendo água com açúcar que sua mãe colocava naqueles pequenos bebedouros pendurados na varanda de sua casa. Com certeza, deviam ter um motor debaixo das asas, só podia ser por isso que tinham toda aquela velocidade e agilidade – pensava ela. Agora, tinha um beija-flor em suas mãos, porém, aquele nunca mais bateria as asas. Ana Alice caminhou com o pássaro em suas mãos até encontrar uma árvore e sentar-se junto ao seu tronco, aproveitando a sombra que ela proporcionava. Com o beija-flor estendido na palma de suas mãos, pensou na própria vida e como ela seria dali em diante. Levantou a cabeça para ver duas adolescentes que passavam de braços dados e dando risadinhas, provavelmente, comentando sobre algum rapaz e, se viu novamente com seus catorze ou quinze anos, andando naquele mesmo bosque, contando para as amigas que iria morar com uma tia no Rio de Janeiro, terminar os estudos e fazer jornalismo. Dedicou-se tão intensamente a esse propósito, que tão logo terminou a faculdade, já estava trabalhando em um jornal de grande porte. Sua vida ia muito bem, tudo dando certo, comprou um apartamento, mandava dinheiro pros pais no interior. Sempre tão ocupada, quando não era com o trabalho, era com os diversos eventos sociais para os quais a convidavam, por isso, há muito não retornava à sua cidade natal. Vivia cercada de homens, sempre muito paparicada. Bonita, inteligente, financeiramente resolvida, parecia viver um lindo sonho, mas como de todo sonho se acorda, Ana Alice acordou, ou melhor, foi abruptamente trazida de volta à realidade.

* O Beija-Flor *

Foi como os românticos gostam de chamar: “Amor à primeira vista”. Marcelo era um empresário da noite carioca, dono de restaurantes e boates da zona sul. Conheceram-se num reveillon na casa de um casal de amigos em comum. Já iniciaram o ano seguinte juntos, caminhando pela praia de Copacabana, admirando o nascer do sol. Como manda o ritual das simpatias de início de ano, pularam algumas ondas que chegavam à praia, jogaram rosas brancas no mar, fizeram pedidos, se beijaram. Doces beijos. Sempre que tinham um tempo disponível procuravam um ao outro. Às vezes largavam tudo e iam se encontrar no meio da tarde. Faziam amor, faziam planos, faziam café e voltavam para o trabalho. Ele insistia para que fossem morar juntos. Ela dizia que daquele jeito estava tudo tão perfeito, pra que mudar. Ele queria conhecer a cidade onde ela nasceu, ser apresentado aos seus pais. Ela dizia que um dia eles iriam até o interior. Nunca foram. Já tinham se passado dois anos desde que conheceu Marcelo, quando começou a se sentir estranha. Reclamava com as amigas que havia engordado, que estava muito preguiçosa, enjôos eram comuns. Alguém comentou: – Você está grávida. – a principio levou na brincadeira, disse que não, que era somente um mal estar. Depois de alguns dias ficou tensa, seu ciclo menstrual já estava pra lá de atrasado. A possibilidade de estar grávida realmente existia, na correria que era sua vida, estava sempre se esquecendo de tomar as pílulas e, camisinha só usou bem no começo da relação com Marcelo. Resolveu procurar um médico, que lhe pediu uns exames. Tomou a decisão de só contar para Marcelo quando tivesse certeza da gravidez.

No dia marcado foi ao laboratório buscar os resultados. Achou estranho o envelope estar lacrado. Foi até o consultório onde o médico confirmou sua gravidez de dois meses. Ela chorou. E, chorou ainda mais quando soube que outro resultado também havia dado positivo: Ana Alice era soropositivo. – Como pode? Não, esse exame só pode ter sido trocado, deve ter havido um engano – revoltou-se Ana Alice. Depois de alguns dias, tomou coragem, reuniu forças e contou tudo para Marcelo, que de imediato disse a ela que ficasse calma, que ele também faria alguns exames, mas que, independente do resultado, estaria o tempo todo ao seu lado. Realmente foi o que aconteceu nas primeiras semanas após a notícia, só que, com o passar do tempo Marcelo foi ficando cada fez mais ausente, sempre com desculpas para desmarcar os encontros com Ana Alice. Até que um dia, ela pegou um recado dele na secretária eletrônica. – Tive que viajar às pressas, não sei quando volto, se cuida. – Marcelo nunca mais voltou.

*O vôo*

Depois de muito tempo dedicando-se ao trabalho, chegou o momento de Ana Alice tirar férias – verdade que foram férias forçadas. Sentia-se cansada e perdida, precisando urgentemente do colo dos pais. Tinha um grande problema pra resolver: Como contaria tudo o que está se passando a eles, seus pais? Queria pedir que olhassem por seu filho caso desenvolvesse a doença e viesse a partir em definitivo dessa vida, mas ao mesmo tempo não queria acreditar que isso pudesse acontecer. Não se via como àquele beija-flor que segurava em suas mãos, lindo, porém, morto. O que mais a assustava não era a morte propriamente dita, e sim, o fato de ainda faltar tanta coisa pra ser feita, tantos sonhos, planos, viagens. Ainda conseguiria amar algum homem? Seria ela, amada por algum homem? A partir de agora, antes do primeiro beijo, teria que vir a verdade: - Sou soropositivo. –A noite começava a cair. Seria de céu estrelado, exatamente igual as suas noites de criança, quando vivia naquela pequena cidade, sonhando, sempre sonhando. Ana Alice colocou o pássaro morto em cima de um dos galhos da árvore. Fez questão de esquecer o livro ali no chão, sobre a grama alta. Saiu andando pelo bosque em direção a casa dos pais, imaginando-se um beija-flor. Mais do que nunca, ela quis ser como eles e, poder voar em qualquer direção, fazendo de cada vôo um brinde à liberdade. Lá se foi Ana Alice “voando” por sobre o gramado, como um dia fez aquele belo beija-flor.

Elano Ribeiro Baptista

Dezembro de 2006.

Elano Ribeiro
Enviado por Elano Ribeiro em 29/12/2006
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