Gatuno trapalhão

— Peguei-te, ladrão safado!

As palavras do investigador soaram raivosas e excitadas, pelo inusitado de ter posto as mãos no ladrão que estava lhe tirando o sono.

Os roubos nas casas das redondezas da delegacia onde trabalhava estavam sendo freqüentes, e não havia pista alguma sobre a autoria.

— Agora tu vais contar tudinho ao delegado!

E lá foram eles para a delegacia, acompanhados do denunciante, Urbano, morador da última residência que Zarolho, o ladrão, tentara roubar.

Chegando à delegacia, ouvida e registrada a queixa de Urbano, o delegado, também excitado com o flagrante raro e oportuno, dispôs-se a ouvir Zarolho. Escrivão a postos, iniciou o interrogatório.

— Então, Zarolho, foi pegado com a boca na botija, heim?

— É, doutor, um dia é da caça...

— Conte-me tudo. Tudinho! Quero ouvir sua história. Mas não se livra dessa, não, ouviu?

— ‘Tá bem, Doutor. Vou contar.

O delegado Moreno dá as primeiras instruções ao escrivão, preâmbulo do auto do interrogatório, identificação do depoente etc.

— Aos treze dias do mês de agosto de mil, novecentos e noventa e três, perante mim, delegado, compareceu o indivíduo José de Souza Silva, conhecido por Zarolho, preso em flagrante após tentativa frustrada de roubo a residência...

...

Eu estava zanzando por aí com Bira, procurando uma boca pra faturar. A gente ia passando por uma rua meio deserta, com umas casas boas, mas nem tanto.

— Zarolho, vê aquela casa. Muro alto, portão fácil de abrir, beleza pra gente.

— É, Bira. Dá pra gente se esconder enquanto rouba. Esses doutorzinhos bestas pensam que muro alto defende eles...

Bira deu uma risada, satisfeito.

— Deixa eles pensar, Zarolho. Assim a gente tem mais casa pra entrar, e fica protegido pela proteção deles.

A gente estava conversando ainda, quando o portão de carro se abriu e foi saindo um Fiat, dirigido por uma moça. Ela estava com pressa, acho, e não fechou logo o portão. Deu tempo pra gente entrar e ficar um pouco na moita.

Prendi o portão, pra não fechar. Só uma brechinha, pra ninguém da rua ver a gente.

Por ali um pouco, e tudo calmo.

Peguei o revólver e fui andando.

A gente entrou por trás, pela porta da cozinha. Abertinha... Beleza.

Devagar, a gente foi assuntando.

Dois boyzinhos numa salinha, vendo TV, sem pestanejar.

Bira ficou de tocaia, e eu entrei.

Na sala grande, ninguém. Vazia. Tinha um relógio na parede. Peguei e levei pra Bira.

Voltei. Só boyzinhos ainda vidrados na TV.

Passei e fui pro primeiro quarto. Tinha um homem dormindo.

Fui de fininho pro segundo quarto. Vazio. Vazio também o terceiro.

Nada ali pra pegar fácil.

Voltei pro quarto onde o homem estava dormindo. Entrei e ouvi barulho no banheiro.

Bati na porta, com pouca força, pra ver se o homem não acordava.

Ouvi lá de dentro:

— Que é, velho? Já vou sair.

Bati novamente.

— Já vou! Calma!

Saiu uma mulher, ainda meio molhada do banho. Me viu e foi dizendo:

— Que é isso, meu senhor? O que é que o senhor quer aqui?

— Isso é um assalto, dona. E fica calada pro homem não acordar.

E a mulher, nem aí... Falando mais alto ainda:

— Que é que o senhor quer? A gente não tem nada, não!

Foi saindo e tropeçou na cama.

— Calma, dona! Se acordar ele, é pior!

— Não tenho nada, não, meu senhor!

Ela continuou falando alto, e bateu novamente na cama, como quem estivesse desequilibrada.

Saquei que ela queria acordar o marido, e fui logo pra perto dele.

— Que é que o senhor vai fazer aí? Já disse que a gente não tem nada!

O homem acordou, meio atarantado.

— Isso é um assalto. Vai levantando logo.

— Calma, meu senhor! Deixe eu me acordar primeiro!

— Isso é um assalto. Levanta rápido! Me passa o dinheiro!

— E você acha que eu durmo com dinheiro, é?

— Sem brincadeira comigo!

— Sem brincadeira nenhuma. Não durmo com dinheiro, não.

Eu já estava me irritando com aqueles dois. Mas tinha os dois meninos na sala, e eles podiam notar, fazer alguma coisa...

— Levanta logo. Abre a gaveta. Me dá o dinheiro.

— Já lhe disse que não tenho dinheiro. Veja.

Ele abriu a gaveta da cômoda. E não tinha dinheiro nem jóia.

Fiquei meio perdido. Tinha que pegar alguma coisa. E tinha que ser pequeno, porque a gente não estava com carro.

—Vamos logo! Prá sala.

Voltei-me pra mulher e mandei ficar na porta. E falei pro homem:

— Primeiro me dá tua arma.

— Que arma? Danou-se!

— Danou-se o quê?

— Tu querendo que eu tenha uma arma, agora!

— Abra a outra gaveta! Logo!

Ele abriu a outra gaveta. E não tinha nada também.

— Vamos pra sala.

Levei os dois pra sala. Bira já estava lá, e os meninos ainda não tinha visto a gente.

Bira veio em minha ajuda, e eu fiz sinal pra ele ir pra salinha de TV.

Os meninos viram a gente entrando, com os dois na minha mira. Gritaram.

— Não grita nada! — eu disse.

Olhei prum lado, só vi almofada no chão. No outro lado, um som, difícil de ser tirado, tanto fio que tinha, com caixas grandes.

Só restava o videocassete. Peguei.

Quando eu estava dando o vídeo pra Bira levar pra fora, o homem caiu no chão, se estrebuchando.

A mulher gritou, desesperada.

— Acuda, gente, Bano tá morrendo!

Quem ia acudir? A gente?

Os meninos abriram também no berreiro, cada um gritando mais alto.

Eu estava já pensando em passar bala em tudo e cair fora logo.

Mas o homem ‘tava lá no chão, batendo e babando...

E a mulher gritando, cada vez mais alto.

Eu só ouvi o nome dele: Bano. Sabia lá se ia aparecer mais alguém?

Bira ficou logo nervoso. Pegou o vídeo e correu pra fora.

E eu fiquei ali, arma na mão, apontando pro menino mais velho, e olhando o homem no chão, tremendo...

E a mulher gritando. E os meninos gritando.

— Calados, se não eu atiro!

Aí é que eles gritavam mesmo.

— Deixa eu pegar ele, moço! Ele está morrendo — a mulher gritou pra mim.

Aliás, ela gritava desde sempre.

Bira gritou lá de fora:

— Melou, Zarolho! Vem!

E eu corri. Deixei o homem lá morrendo, e os outros três gritando.

A gente pegou o vídeo, o relógio e saiu pelo portão, mais que depressa.

Tava ali, tentando entrar, uma D20, com um cara no volante.

Ele desceu, já com uma 12 na mão.

— Que vocês estão fazendo aí?

— Nada, não, doutor.

E aparece, por trás de nós, com um revólver na minha cabeça, o homem que estava estrebuchando naquele instante.

Pegaram a gente e chamaram o polícia que morava na outra casa.

Por isso me pegaram, doutor. Só trapalhada.

...

Findo o interrogatório, o delegado manda prender os dois gatunos.

Deixou para ouvir Bira depois.

Voltou-se para o queixoso e perguntou:

— Quer dizer então que o senhor não estava morrendo?

— Não. Eu só tinha uma saída. Encenar um ataque. Minha mulher e meus filhos entenderam e fizeram a parte deles.

— E a D20 que chegou na hora?

— Arte e sorte andam juntas. Era meu irmão que estava chegando de viagem.

Zarolho, ouvindo aquilo, repete:

— Trapalhada, né, doutor? Só trapalhada.