A vida amarga da doceira Alzira e outras frustrações associadas [Contos de cidade pequena]

Foi as 22:37, segundo consta no apressado boletim de ocorrência registrado. Digo “apressado” devido ao excesso de palavras mal terminadas, ou se quer começadas, e aos artigos e conjunções de menos, que, certamente, não se devem a deficiências gramaticais do também escritor cabo Miguel.

A loja fatidicamente assaltada foi inaugurada em cerimonia simples, mas bem frequentada, há apenas três dias, pertencia, atentem-se ao tempo verbal, à Dona Alzira. Doceira afamada da cidade, que há muito já retirava da venda de seus quitutes o trato de cada dia, a faculdade para os dois filhos e o sustento para o, agora supostamente finado, marido mandrião.

Foi por muita insistência de vizinhos e amigos que relutante resolveu “oficializar o ofício”, disponibilizando em mostruário de vidro e estantes de aço seus doces já conhecidos e provados. No entanto, o inesperado evento transformou em prejuízo o que antes era tratado como capital de giro e em dívida o que até então eram apenas investimentos a saldar.

Tristemente, no quarto dia de funcionamento, da pequena loja de doces; mostruário, caixa, estantes de aço e forros de chita foram colocados a venda. Como se não bastasse tudo isso, por uma arbitrariedade trágica do destino, no mesmo dia o marido da doceira, tendo saído para uma pescaria pela manhã, desapareceu e nunca mais foi visto, sendo depois de algum tempo dado como supostamente morto, se é que é possível estar-se supostamente morto. Não menos estranho foi o desaparecimento concomitante de quatro camisas, duas calças jeans e um sapato de camurça dos bens que pertenciam ao supostamente finado marido.

É fato conhecido por endividados, profissionais mal sucedidos e psicanalistas que o desespero traz à mente velhas esperanças que, supostamente, deveriam estar mortas e enterradas juntamente com aquela carga orbital de hormônios que nos aflige na juventude. No entanto, a volta das velhas esperanças não traz consigo novas esperanças, muito pelo contrário, elas sempre são acompanhadas por sentimentos de frustração, desapontamento e uma consequente baixa estima que, em uníssono, insistem em dizer com voz debochada - Olhe para o que poderia ter sido sua vida... - e depois de uma gargalhada sonora e irritante continuam - Agora olhe para o que é a sua vida.

Era o gosto amargo destes pensamentos, somado à salubridade das lágrimas, que sentia Dona Alzira, enquanto mexia seu velho tacho abarrotado de uma pasta que, posteriormente, viria a se tornar doce de leite. Enquanto penosamente cuidava para que o doce não desse rapa, lembrava-se também de seu antigo sonho de moça, quando planejara tornar-se cabeleireira com cadeira giratória e tudo mais. E, se não bastasse, dividindo ainda mais suas sinapses, monitorava atenta o borbulhar da calda para os figos, afinal, dívidas multiplicadas multiplicam também o trabalho.

Não deve causar, já peço, estranhamento aos raros leitores, a simplicidade com que o insucesso profissional é tratado neste texto, profissão por aqui, não se persegue, mas se herda de uma maneira sutil e praticamente invisível. O filho do carpinteiro que queria tornar-se juiz, nem que fosse de futebol, sem notar, carpinteiro é. O filho do padeiro, que antes desejava abrir uma casa de bingo, agora sova a massa do pão as três da manhã e até mesmo o padre, que desde criança quis ser papa ou pelo menos bispo, é apenas o pároco de um outro lugarejo, e só nisso se difere de seu velho pai.

Não menos diferente é o exemplo do pobre cabo Miguel.

Recentemente foi exposto ao ridículo diante de um meliante que, as 22:37, roubava uma loja de doces, é bem verdade que preferiria se dedicar mais a literatura e a escrita de seus romances do que às grotescas funções militares, nem por isso se eximiu de seu juramento profissional.

Foi por esta motivação altruísta que interrompeu naquela noite sua marcha apressada em direção ao quartel, onde intentava se livrar de um inesperado desconforto intestinal, a fim de dar voz de prisão ao dito gatuno que em disparate atravessou o lote dos fundos seguido quase de perto pelo militar, este último, no esforço, acabou por descobrir que o seu desconforto intestinal era mais intenso que supunha. É claro, que por honra e senso de preservação de sua imagem como autoridade local, foi obrigado a deixar evadido o ladrão e na soleira da porta da loja apenas uma cópia de uma boletim escrito as pressas, no qual, inevitavelmente, se liam palavras mal terminadas, ou se quer começadas, e artigos e conjunções de menos.

Junior Gonçalves
Enviado por Junior Gonçalves em 13/11/2011
Reeditado em 22/09/2015
Código do texto: T3333720
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