Os Passos Perdidos de um Homem.


O homem dera as costas e agora, às vezes acelerava o passo às vezes quase parava. Mito caído de si mesmo. Estátua quebradiça que desabou ante o terremoto das desilusões. Os passos apertam o concreto da calçada. Quer não estar, mas está, não quer ir, mas anda como que um zumbi despojado de alma.
Uma ponta de saudade ardia no fundo do coração. Os últimos dias haviam se tornado encenações diferentes de uma mesma peça. Existia liberdade, mas esta o estonteava. Maldita memória, bendita memória, jardim florido de sua vida, eterno deserto da miséria da existência. Alma caída, rejeitado de criação querendo ascender ao tribunal que o condenou sem defesa; não basta a inocência ante a cicatriz da culpa.
Sente liberdade para tudo, inclusive para sentir-se preso. Retornar era uma possibilidade louca ante ao rumo tomado pelos acontecimentos. Tais como que cacos que brincam como que zombando da falta de forma. Por tudo que foi de coerente, e por fim, o desabar irracional sobre as pernas fraquejadas de um metálico orgulho que naufragou sem possibilidade de salvar-se, que foi-se antes que tivesse chance de ser resgatado.
O sono tornara-se cada vez mais intranquilo e nos momentos de insônia, descobriu-se sozinho. Era como se a razão de viver houvesse desaparecido. Mas qual nada, continuava vivo. Despojado do tempo, rebelde às horas, em conflito desarmado contra um nada que só existia entre os vazios que enchiam os espaços de sua alma.
Havia uma ansiedade que se transformava lentamente numa estranha calmaria. Havia tristeza em reconhecer que, de tantos sonhos, sobraram apenas desilusões. E então ria-se, tinha um sorriso tolo visitado por lágrimas viris, insultos ao seu rosto espartano, despropósito às suas mágoas tão bem guardadas no peito moldado em escudo. Coração vermelho e cérebro cinza, sentimentos são carmins, pensamentos são mesclar de luzes brancas e pretas trevas, cinzas de si, fênix sem vontade de acender.
Lembrava que o espelho refletia a mesma figura, tão transparente quanto oculta. As coisas andaram mais depressa que os sentimentos e não dera tempo de acompanhar. A razão tardia não dava conta de segurar emoções infantes. Bloco de pedra, um emaranhado biológico, um sistema de órgãos, um mecanismo vivo quase mineral, passos lentos, tudo é lentidão a desafiar as invasões de velocidade e movimento.

Agora uma obtusa lucidez mantinha o homem em pé. A solidão tornava-se assim, o lugar ideal para encontrar o próprio eu. Mas isto não é simples quando é a tristeza que invoca o nascer de cada dia. O dia pouco estará disposto em ouvir lamúrias e sobras de uma noite mal dormida, de um sonâmbulo que perambulou por caminhos reais e pela interioridade de si, saltando entre ilusões, desviando-se dos próprios delírios, orando para ter fé, pedindo para existir Deus, almejando que existam, em algum lugar, algumas migalhas de esperança.
Povoava o dia uma sonolência do horário que caminha a passos lentos. Restava fugir da realidade. Restava fugir da realidade que conspirava contra ele. Sobrevivia naturalmente, mas tornara-se difícil dar rumos ao viver. Então inventar uma utopia original, deixar-se levar pelas neuroses pragmáticas que fazem da loucura um bom lugar para refugiar-se da consciência e das consequências de ter que viver a cada dia.
Confundia-lhe o desejo de carícias e a vontade de cultivar sentimentos. Uma moral pré-concebida, herdada do contexto social, parecia tornar os dois desejos inconciliáveis. Alma e corpo embatiam, retalhava-se o homem. As chamas de velhos instintos a aquecer o coração batendo em ritmo primitivo, sentidos despertos, olhares, olfatos, umas tantas lembranças, um pouco de realidade, outro tanto de fantasia, e o riso irônico ante a vulgaridade patética de ser a enfrentar as fugas ao velho ceticismo.
Medo dos instintos, veneração à racionalização. Mas qual nada. Pensava-se de um jeito e agia-se de outro. Absorviam-se os pré-conceitos sociais mutando-os numa repressão psicológica individual. A vontade é a maior das forças, o ser é potência pronta para se mostrar viva, como não ser? E por que acaba-se sendo? Pré-determinação, decreto divino, ter que existir, e ponto. E por que não? Pelo simples prazer de negar a afirmação. Não dar o braço a torcer, querer lutar, pois esta parece a sina do vivente.
Tremendamente indigesto ter que engolir o contexto onde se vivia, assim como engolir a si mesmo. Restou sonhar com voos livres, mas não passou dos sonhos. Os pés estavam alicerçados no chão. Asas imaginárias dos tantos Ìcaros que despencaram felizes do céu; asas de poesias que esfacelaram-se em letras, pois que no caos encontraram-se com a essência lírica da criação e, desiludidas, uma vez mais puderam crer. Mergulharam entre as estrelas fugitivas, pois que o sol seria luz a apagá-las.
Grande dualidade humana ser primitivo e ter a capacidade de não ser. Ser primitivo é muito mais fácil, basta deixar a correnteza levar. O contrário exige músculos, exige vontade de bater os braços. Braços exaustos. Criou-se, assim, uma situação degenerativa. Cavara-se a própria mortalha e ora caía, ora tentava sair. Pensamentos dão lugar novamente à visão, à cena. O homem afasta-se, está cada vez mais longe. Seu vulto diminui progressivamente. Porém, quebra-se a tendência e, numa fração de minutos ele vira o rosto. Estranha expressão. Ele está opaco e ao mesmo tempo lívido. O homem tentou ser homem entre pedras, mas qual nada. Foi o homem quem virou pedra.


http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/9mostra/6/48.pdf

Gilberto Brandão Marcon
Enviado por Gilberto Brandão Marcon em 13/11/2011
Reeditado em 28/11/2011
Código do texto: T3333939
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