Os quadros coloridos de Julie Mont-Franc

As coisas não são como parecem.

Umas, a muitos apetecem sugerir o que, evidente, não são.

Mas, a outros a lógica suscita o que a ciência lhes invita, como manda, em suma, a razão.

(Valdez O. Cavalcanti)

Para comemorar o dia 10 de Novembro, do ano do centenário da morte do poeta de Charleville, foi organizado um concurso internacional de poesia. Não me atardarei nas minúcias do regulamento do mesmo. Guardo para outro recito, a descrição técnica de tais concursos. Colaboraram escritores franceses, ingleses, japoneses, coreanos, suíços e italianos. Nenhum português, nenhum espanhol. Um caso insólito, além da não participação ibérica, foi documentado pela biblioteca de Ardenne - soube mais tarde, que por um velho amigo meu - aquando do concurso. E é deste caso que irei falar.

Em Maio de 1997, durante uma das minhas estadias em Milão, encontrei, por mero acaso, Damião Vilalobos na Galleria Vittorio Emanuele. Vio-o chegar, de passo firme, cabeça erguida, de sobretudo preto e sóbrio chapéu-de-chuva. Após os abraços efusivos que requer tal situação, e de nos gabarmos do nosso excelente aspecto, apertámos as saudades na mão direita, e, na esquerda, um copo de Campari. Entre dois tragos de conversa, Damião relata-me as suas experiências como poeta visual, conta-me dos seus trabalhos plásticos realizados em conjunto com o germânico O. Horl, e das suas investigações e deambulações pelo país da Marseillaise, em busca de novos desafios.

Em 1991, Vilalobos fora expatriado de Lisboa a Ardenne, como bibliotecário da biblioteca do Museu da cidade. Tinha a seu cargo, entre outras tarefas, catalogar os trabalhos apresentados para o concurso que acima vos falei, de maneira a facilitar o labor do júri composto por dez catedráticos: entre eles, um matemático. Se o leitor associou Damião Vilalobos, devido às suas vestes sombrias, à imagem de uma pessoa soturna, dobrada pelo peso dos anos, de pele engelhada e baça, que passa os dias entre quatro paredes a classificar e catalogar livros embolorados, em pergaminhos ou papiros, enganou-se. Deixe que lhe diga, meu caro leitor, que está muito distante da realidade. E mais lhe digo: está em plena Idade Média; com o eco diante desses seus olhos, bacentos como uma rosa murcha, ainda a ver monges a tentar preservar, em livros, a sabedoria acumulada pela humanidade. Vilalobos não é um Calímaco! Não! e farei um pequeno parêntese para vos dizer que Damião Vilalobos, o meu sábio Damião, bisneto do Conde de Milheiros... Como dizia, Damião Vilalobos, rapaz airoso, de bigode farfalhudo, que esconde a fineza duma boca contemplativa, de elegância requintada, levantava-se às cinco da manhã, e logo após duas horas de exercícios físicos, dedicava-se a leituras, estudos e conferências, num ritmo rabelaisiano. É um grande profissional da informação, de fácil comunicação e expressão, flexível, e com uma atitude investigativa, educativa e ética, como um bibliotecário deve ser nos dias de hoje.

Fechado o parêntese, voltemos ao que nos interessa. Chegaram-lhe às mãos milhares e milhares de envelopes lacrados: versos livres, quadras, sonetos alexandrinos, sextilhas, hai-cais, silvas, e uma enorme caixa de madeira, também lacrada, de trinta metros de largura por três e meio de altura. Devido ao seu exagerado tamanho, e ao alvoroço causado, o presidente da mesa dos júris, Monsieur Vincent Prokofief, douto da New Periphatetical College of the Royal Ridder's, mandou que a mesma fosse armazenada na cave do Museu, para ser aberta ulteriormente. Foi chamado um dos carpinteiros da região, Jean Lescaux, que chegou de boina preta, lenço vermelho ao pescoço, e à tiracolo uma caixa de ferramentas. Como já deve ter imaginado, devido à desproporção da caixa, foram necessárias várias horas de espinhosa labuta, marteladas, serradelas, cachoeiras de suor, até os quatro lados da enorme caixa renderam-se ao chão. E agora, sim, cá vamos ao caso insólito. Dentro da caixa, não havia nem uma, nem duas, mas catorze caixas de madeira, dispostas lado a lado, de menor tamanho. Cada uma dessas catorze caixas, desta vez facilmente abertas, continha um quadro de dois metros por três de altura. Cada quadro continha uma letra, - Sim! Sim, meu caro leito. Uma letra! - e, no canto inferior esquerdo, um minúsculo número. Somente as vogais tinham cor definida. A letra A fora pintada de negro, a E de branco, a I de vermelho vivo, o O de azul e o U de verde. As consoantes, eram imagens trabalhadas em cartão prensado, evocando os sons e perfumes da crueldade, da pureza, da cólera, da paz e do paraíso, e, depois, meticulosamente coladas na tela virgem.

A contragosto, o carpinteiro dispôs os quadros por ordem alfabética, como lhe fora ordenado pelos catedráticos. Acefijlmnnortu foi a palavra encontrada. Voltaram a dispôr os quadros, desta vez em ordem inversa. Utronnmljifeca, foi o resultado. Não encontrando, o júri, senso nas letras pintadas e nas imagens coladas, e que, juntas, formavam a palavra Acefijlmnnortu, na ordem crescente, e Utronnmljifeca, na ordem decrescente, foi pedido ao matemático, que calculasse todas as combinações possíveis para encontrar o real significado àquela brincadeira de mau gosto.

A curiosidade reinava em Charleville e no Museu de Ardenne. Qual seria, afinal, o significado daqueles catorze quadros devidamente inscritos no concurso internacional de poesia de Charleville? Durante uma semana, o matemático enclausurou-se numa sala, tentando encontrar uma solução lógica ao problema. Não bastava associá-los; era necessário dar-lhes um governo idóneo. Damião Vilalobos, de olho matreiro, vislumbrou os números quase imperceptíveis no canto inferior esquerdo de cada um, e ordenou-os de um a catorze: Julie Mont-Franc, era a solução do enigma. O nome do artista fora finalmente encontrado e o trabalho exposto ao lado dos demais, em parte devido à insistência de Damião Vilalobos que, maravilhado com o esplendor da obra, argumentou contra a sua desqualificação.

Neste momento, me perguntará o leitor, qual o lugar que os catorze quadros obtiveram no concurso de Charleville: um canto numa cave fria e húmida!

Cristina Pires

Novembro/2004