o contorno de uma xícara

Que absurdo. Isso é uma xícara. Vejo um pote com alça. Mas o que é um pote? E o que é uma alça? Me enlouqueço nesse mundo, porque tudo parece que existe quando se tem nomes pra elas, que se misturam. Não importa o nome que dou, mas percebo que ela existe. É xícara é um nome tão pequeno pra algo tão complexo. Será que xícara foi o nome de uma rainha em algum passado distante? Que nela cabia uma complexidade infinita de relação e duvidas? Claro que outros nomes também tem essa potência. Não desprezo isso, mas estou falando desse objeto, por isso vou me ater a ele. Tem nomes que cabe o mundo dentro de tão forte , de tão poderoso. Tem outros tão pequenos, que uma formiga ficaria apertada. Mas imagino se soubesse mais das formigas, talvez mudássemos seu nome, uma vez que formiga e pequeno tem uma proximidade muito grande, que não condiz com a infinita incompreensão que tenho desses bichinhos que moram embaixo da terra. Não vejo nada de pequeno nelas. A vida é grande e tem nomes que sofrem pra dar recado de sua responsabilidade.

Estiquei minha mão até ela e sua forma se encaixou em minha mão. Tão quente ainda. Tem calor que o tempo demora a dissipar. É assim com muitos amores ou coisas importantes que passou por mim. às vezes rápido, um estalo, mas fulminante. Um tempestade indecente. Indecente porque não me escondeu nada. Revelou numa porrada tudo que não podia ver naquele momento. Me lembro de uma namoradinha que tive durante uns meses, que me deixou escaldante por toda a vida. Ainda lembro dela a cada vez que me deparo com as futilidades das coisas. Aquele olhar que varria tudo em mim, eu sentia nu e desprezado ao mesmo tempo. Que louco é quem ama. Não tenho mais coragem pra isso. Mas deixa Mariana na terra do fogo eterno. Voltando, ela ainda está quente pelo café que tomei . O mesmo gosto que ainda está em minha boca. Milhares de vezes tomei café, milhares de vezes minha avó trouxe uma xícara com algo dentro pra eu tomar. Quando era criança eu lavava a pedido de minha mãe. Toda sujeira que pousasse nesses objetos eu tinha uma obsessão de limpar . Usava esponja de aço, esfregava muito sabão, meu pai não gostava de ver o filho dele lavando xícara. Mas isso não negava a existência da xícara. Ele dava a isso uma conotação sexual. Essa abençoada função pertencia apenas a minha mãe. Não por destreza, mas por uma baixeza qualquer, dessas que sobrevive mesmo num mundo onde ninguém se atreve a falar disso de tão antiquado. Mas que continua no subterrâneo agindo e tirando das pessoas a capacidade de enxergar algumas riquezas.

Ainda tem as cores que meus olhos conseguem identificar. Não com precisão, como a asa que vejo, mas difusa, porque elas mudam de acordo com o ambiente e com a sensibilidade de quem olha. Mas tenho o meu jeito de ver as cores. E essa que vejo é azul que fica bem atraente á luz que vem da porta da rua. E aproveito pra dizer que está um belo dia. Gosto quando o sol tem esse dedo de infância, um convite nele pra brincar e pisar a chão firme molhado da terra. Choveu a noite toda, isso dar um frescor delicioso enquanto escrevo aqui dentro de casa. Há mais uma coisa, minha avó está na cozinha preparando um almoço. Como alguém pode fazer a mesma coisa por sessenta anos nos mesmo horário. Esse conforto permite que eu tenha um olhar de felicidade pra avistar a xícara sem preconceito ou qualquer interesse que excluiria dela alguma qualidade essencial. Lembro quando era mais novo que aleijei muito coisa bonita simplesmente porque seu tamanho verdadeiro era grande demais pra mim. Não tinha repertório pra administrar coisas tão grandes. Ficar velho é ficar mais inteligente e não ter medo do tamanho das palavras.

Há nela, não na minha vó, mas na xícara, um buraco no meio, onde é armazenado os líquidos que podem ser vários. Já tomei bebidas em vários tipos, grandes, pequenas, de vidro, de esmalte. De boca fina, de boca grossa. Em algumas casas já tomei até vinho nelas, por desleixo ou uma pobreza de espírito, confesso que certas qualidades sofisticada não cabe numa xícara, mas não tira de forma nenhuma a capacidade de sua função. Os costumes e nossas charlatanices quer sobreviver a todo custo.

Quando não está em minhas mãos, ela precisa de outro anteparo. Que pode ser uma mesa, ou qualquer objeto plano que possa repousar...Não tem vida própria. Se eu deixar com a asa virada pra porta da rua. Estará assim por toda eternidade. A não ser que alguém vai La e dê ela alguma alma. Vivo a emprestar minha alma pra elas. Principalmente quando dou conta de sua incapacidade de movimento. Já vi feita de barro, de alumínio, de louça, vários matériais pode conter no seu intimo , no entanto não define seu nome. O que define seu nome é o formato dela, com aquele buraco no meio, uma asa por onde segurar. Se tirar a asa, já não será xícara, será um copo, que ai outra coisa, apesar de ter muita semelhança. Uma vida sem uma xícara não sei se seria tão perturbada. Claro que tem o copo, que seria um substituto tão bom, mas sem a mesma praticidade da xícara, que por ter onde se segurar, deixa meu espírito leve e seguro. Nunca devemos desprezar um suporte, por onde mantemos as coisas firmes no nosso controle. A xícara não é pra isso, mas de longe dá pra gente essa possibilidade. Que poderia ser interpretada como uma vileza qualquer . Uma manipulação talvez. Exagero nisso. No entanto, não vejo assim, vejo como uma vantagem, um jeito de estar mais perto das coisas sem um risco de causar danos. Claro que o perigo do imponderável estará em torno de qualquer coisa. Alias isso que dar prazer de viver. Sem o sentimento, essa perturbação que me tira das coisas, não teria esses prazer que tenho agora de apresentar o que vejo pra quem, por uma preguiça ou imaturidade, não consegue ainda penetrar algo tão trivial como uma xícara. Mas minimizar é ato da asa da xícara. Talvez aqui a xícara tenha um pouco de alma. Não no sentido grego de movimento, mas no sentido cristão de se deixar apanhar, ser manuseada. É criada a cada hora da manhã, ou do café da tarde. Porque cada vez que isso acontece, uma serie novas possibilidades acontece a ela, e só alguém muito ligado há algo sem importância pode dar conta dessas bobagens, que uma mente uma pouco mais feliz, não daria conta.