Páginas d'água

Páginas d'água

E saíram de suas casas às "margens do mar". Eram casas secas e apertadas. Tão apertadinhas que mal cabia um único morador dentro delas.

Como estavam deslumbrados com a imensidão... Não enxergavam o fim... E nem os seus fins. O fascínio era sem medida.

Sabem daquela coceira que a gente sente quando entra numa sala sem ninguém para nos vigiar? Vocês já sentiram essa coceira? Pois eu também. Segurava minhas mãos, mas elas não paravam quietas. As pernas também entravam na dança. E lá estava eu mexendo no que não devia. Não raramente, causava um prejuízo.

Também sentiram esta coceira. Só que a coceira era na boca. E isso aí! Na boca. Já sentiram coceira na boca? Nesta história já sentiram!

E o que acontece com os que sentem coceira na boca? Têm de comer, é claro! E foi isso o que fizeram. Começaram a comer. Comer, comer e comer sem parar...

Estão pensando que comiam peixes fritos? Algas marinhas? Nada disso! Pranchas de surfe? Muito menos. Comiam era o mar!!!

Mar se come? Bem, o meu mar é comestível. Portanto, não acho nada demais alguém comê-lo. Afinal de contas, nas outras histórias engolem-se avós e netas inteiras, comem-se maçãs envenenadas que entalam no pescoço, telhados de chocolate e paredes de biscoitos... Até crianças são devoradas depois de transformadas em mingau! Então não reclamem do meu mar, que ele é muito saboroso mesmo. Se você provar e sentir o gosto de verdade, vai querer comer todo dia (mais de uma vez, quem sabe?).

Posso continuar a história com meu mar comestível? Muito obrigado!

Onde estava/ Ah... Já me lembrei! Devoravam o mar branco (não era espuma. Ele era branco mesmo. Leitoso e nada tranquilo). Eram insaciáveis! O apetite era tão grande que nem se deram conta de que o mar estava diminuindo e logo ficariam sem ele. Começaram pela praia e foram comendo toda a orla. Subiam e desciam incontroláveis. E o mar diminuindo... De repente... Dão de cara com muitas embarcações. Todas pretas. Umas pequenas, outras grandes, algumas lá longe... Outras pertinho da fome desesperadora.

Já que o mar estava recuando e poderia acabar mesmo, resolveram comer as pranchas, jangadas, lanchas, barcos, iates, navios (de guerra, científicos e de turismo também). Nada escapava.

Alguns já haviam nadado no carijó que era o mar.

Abrem-se parênteses: (Querem saber por que o mar agora é carijó? O mar não era branco? Nele não estavam barcos pretos? Preto com branco salpicado não dá carijó? Olhe a Galinha d'Angola ou pergunte ao Galo que tem saudades). Fecham-se parênteses.

Alguém nadava no meio do mar carijó. Esse alguém, apesar de muito nadar, não se cansava e nem comia o mar. Mergulhava de cabeça, explorava suas belezas, nadava (e boiava muitas vezes, é verdade). Também via as embarcações todas. Encostava em seus cascos, nadava por baixo, viajava clandestinamente nos porões dos navios e desfrutava do luxo dos iates e transatlânticos. Mas também se sentava nas toscas canoas e jangadas, equilibrava-se divertidamente na prancha dos surfistas, observava os navios de expedições científicas e procurava entender por que os de guerra estavam por todo lado (muitos de outras terras pareciam querer tomar conta do mar).

Nadava entre os galeões, submarinos (nucleares, inclusive), navios vikings, monstros marinhos, gente viva, morta, que não nasceu, vai nascer, não vai nascer e gente que não vai morrer. Avistava terras distantes - destruídas, intactas, conservadas, possíveis e inatingíveis.

Voltava a cabeça para o céu e aves também olhavam juntamente com o sol, nuvens e ar. Um avião passava altivo. Um foguete rasgava tudo com seu grito ensurdecedor.

Nadava sem perceber que outros também nadavam. Eis que chegou a outras praias e descansou. Olhou para o lado e viu que não estava sozinho. Levantou. Conheceu naquele momento seus grandes e antigos amigos e descobriu que ampliaria o seu círculo de amizades. Falava-se sobre outros mares, lagos e rios. Lamentava-se pelas poças d'água, pela lama e pela poluição.

Sacudiram a cabeça, ajeitaram as roupas de banho. Alguns levaram pranchas; outros, equipamentos de mergulho. Houve até quem nadasse nu. Voltaram-se mais uma vez ao mar. Agora um mar mais conhecido, mas igualmente fascinante e desafiador.

E os devoradores? Alguns continuam devorando, outros fazem regime, outros foram proibidos de comer...

Felizmente o mar é vivo. Domina e é dominado. Deixa-se devorar e renasce magicamente dentro de quem o sorve e degusta.

(SILVA, Oswaldo Eurico Rodrigues in BARROS, Edith Marlene de [org.]. Mosaico V: coletânea 2002.Petrópolis - RJ: Parkgraf, 2002 - p.p. 99 e 100)

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 05/12/2011
Código do texto: T3372363
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