Branco profundo

Já era tarde quando ele chegou. Havia chovido o dia todo, a estrada estava molhada e sua botas sujou toda a casa. Minha mãe com raiva no canto da parede não tinha mais esperança. Mesmo assim foi até a cozinha e enquanto ele abria uma garrafa de cachaça preparou seu prato. A casa estava triste desde que meu irmão havia partido. Eu envolvia com meus brinquedos, que não me dava mais prazer desde que fiz treze anos. E bicicleta prometida ainda não via chegado. Ele sentou a mesa e com um copo na mão. Dava goles e apertava o rosto, prazer e dor na mesma boca. A carta chegou. Falou minha mãe como se isso não fosse importante. Onde está? Na mesa da sala. Ele levantou da mesa e leu sozinho na saída da porta. Enquanto lia seus olhos molhavam, depois baixou os braços como se desistisse de algo. Sentou de novo e comeu devagar, sem merecer o prato que minha mãe lhe servia. Minha mãe já estava cansada daquela vida sem retorno e coisa se agravou quando ele expulsou meu irmão de casa quando esse roubou algo importante. Fazia oitos anos que ele foi embora e minha mãe nunca perdôo meu pai. A única coisa que ele fazia pra esquecer o houve era beber e tocar violão embaixo da mangueira, mas nunca falava que existia algo de errado, apesar de todos seu jeito mostrar essa evidencia.

Minha mãe vivia sem esperança, apenas vendo os dias passar. Sua vontade era morrer, nada lhe tirava dos olhos a vontade de não estar mais com a gente. Aquilo era insuportável de se ver. E aos poucos meu pai foi se afastando, apesar de todo dia chegar em casa depois do trabalho, e não sair e perder todos os amigos. Nada mostrava que seu espírito morava com a gente. No ultimo verão me prometeu uma bicicleta, de forma inesperada me encheu de alegria. Algo acontecia de novo dentro de casa. Mas foi só palavras. Não veio e eu fiquei um pouco como eles. Sem esperar mais grande coisa da vida.

E meu irmão nunca escreveu, a carta que chegou foi de um tio que ficou de procura-lo na capital. Dizia a carta que andou em todos os lugares possíveis e nenhum sinal dele. Na hora que o carteiro chegou, minha mãe avançou em sua mão. Com os olhos vermelhos lia e seu rosto perdia todo brilho, um nevoa profunda que já estava nela teve permissão pra se afundar ainda mais.

Esse meu irmão era muito importa pra minha mãe. Sempre foi luminoso e dava a ela algo que a vida dura nem sequer prometia. A noite ao redor do fogão, cada um com seu prato na mão e ele contava muitas historias engraçadas, os olhos dela ria junto, e a casa parecia feliz durante aqueles momentos. Assim que terminava ela dizia pra contar outra. Eu, afastado da mesa via de longe como ele era importante pra ela. Uma parte de mim agradecia, outra queria matá-lo , mas também gostava muito dele. Muitas vezes ficávamos conversando até a tarde. Ele me contava como sair na rua sozinho. Falava de quando ficou doente e foi se tratar na capital e viu todos aqueles prédios grandes e muitos tipos de carros. Contava isso aumentando e dando a cor que ele punha em tudo que saia da sua boca. Gostava de me abraçar e me contava de suas aventuras amorosas. Ele era precoce e já beijava as meninas na escola...

Aconteceu que logo conheceu uns rapazes mais velhos, e logo roubou o primeira coisa. Numa casa da praça da feira levou umas jóias e vendeu na cidade vizinha. A policia descobriu e deixou passsar quando o dono da casa soube que se tratava do filho de meu pai. Mas logo depois roubou um posto de gasolina. Foi preso uns dias, Meu pai não suportou. Alem de quase matar de tanto bater jogou todas as suas roupas na rua, e nunca mais deixou ele entrar dentro de casa. Ficou ainda uns tempos na cidade perambulando com a mala na mão. Minha mãe desesperada, mas nao podia com a força de meu pai, que nunca deixou o amor ser maior do que o sentimento de decência. Logo ele sumiu e desde então nunca houve perdão pra ninguém aqui em casa. No ar está toda a mágoa e a vida se afunda cada vez mais nisso.

Dali em diante não agüentava mais ficar em casa, mas não havia coragem de ir embora, a cidade da minha avó era perto, e vivia me chamando pra passar uns tempos com ela. Mas deixar os dois ali era difícil pra mim, na minha cabeça de filho que queria salvar os pais, toda violência que estava a beira de ser mostrada podia aparecer a qualquer momento e um dos dois poderia morrer. Porque toda agressão contida podia explodir. Então entre a escola e bicicleta que não vinha eu passava muito tempo na minha imaginação que ficou muito rica, o que dava prazer e me assustava. Vivia num estado atormentado e a quantidade de tragédias que passava na minha cabeça, era algo me aterrorizava, mas também me excitava, porque todo um mundo que não existia na vida se revelava e aparecia como um monstro grande e tão real quanto a vastidão de mistérios que via na minha casa.

O retrato de André na minha carteira me alegrava nas horas de maior desespero. Peguei do seu quarto antes de minha mãe fechar seu quarto pra sempre. Era um domingo no futebol na areia do rio. Um amigo dele trouxe uma maquina fotográfica e quando terminou o jogo chamou ele perto da lateral e tirou a foto. Ele fez cara de bobo. Sempre que olho a fotografia vem um sorriso que quase não deixo formar. Ele quase não conseguia ficar serio, com se não agüentasse ser tão bonito. Desse dia lembro de tudo.Tem dias que nunca desaparece na nossa cabeça. E quando ele sumiu minha vida ficou tão suja como a do resto da minha família. Não mostro o que sinto, prefiro guardar pra mim. Converso muito olhando pra parede. Quando a noite e o medo me sufoca tanto que nem sei mais se existo, olho pra parede e começo conversar, me sinto louco nessas horas. Mas é o jeito que encontrei de continuar sem criar mais um problema pra minha mãe. Toda vez que ela me ver dou um sorriso, quero que saiba que estou bem. Que não precisa se preocupar comigo. Ela devolve, mas o seu é pálido e sem fé. Do meu pai não sei nada. Nem sequer consigo rir pra ele. É alguém que mora com a gente, que compra roupa, paga o aluguel e nunca deixa faltar nada em casa, mas seu coração é um sombrio mistério que tenho receio de entrar e desvendar. Mas é integro e me espelho nele quando existem assuntos sérios pra pensar. Não fala bobagens, mas sua dureza diante do que é correto, afasta ele de perto de todo mundo. Porque nunca sei se sou certo o suficiente pra merecer sua atenção...

Um dia quando cheguei da escola tinha uma quantidade grande pessoas na minha casa . Uma senhora que morava na casa do lado, nem lembro mais o nome dela. não me lembro o nome de muitas pessoas. Me segurou dizendo pra não entrar. Escapei de seus braços e entrei e no quarto minha mãe estava com os pulsos cortados. Morta e envolvida num lençol de bolinhas. Meu pai como sempre apenas olhava ela de longe, como se já esperasse algo parecido. Veio perto de mim e pela primeira vez segurou em minhas mãos. Alguns dias depois falou que estava na hora de eu passar uns tempos com minha vó...

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 12/12/2011
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