Amanhã, outro dia[1]
 
      
       Carnaval. Hoje tudo é festa e eu não saio de casa. Faz dois dias que não abro as janelas. Terça-feira. A manhã se anuncia, o desfile de fantasias das escolas de samba caminha para o fim, e as minhas cortinas ainda cerradas impedem a visão da aurora. O sol nasce além da minha janela. A TV passou a noite ligada. Tenho uma vaga lembrança de que às vezes eu acordei e ouvi o batuque do samba e vi uma imagem de mulher rebolando na tele-avenida. Até quis fixar minha vista, mas o sono me venceu. A cama é confortável e nenhum prazer me causa. O que me daria prazer? As minhas equações matemáticas? Os problemas da Física? Talvez a ideia de provar a relação entre Física e a espiritualidade. Há anos venho lendo Amit Goswami, Fritjof Capra... Parte desta manhã dediquei a pensamentos sobre O Universo Autoconsciente. Eu quero muito acreditar. Abri o livro mais uma vez. Pela primeira vez detive-me no poema de Rabindranath Tagore, transcrito no prefácio: Eu escutei / E olhei / Com olhos bem abertos. / Verti minha alma /No mundo /Procurando o desconhecido / No conhecido. / E canto em altos brados / Em meu assombro!
        Quase tudo lá fora me assombra. O sol não me assombra, conforta-me. Esses pensamentos me impulsionam para a janela. Uma força misteriosa me atrai como um ímã que puxa fragmentos de ferro em bancadas de indústria. Meio acanhado, puxei a cortina e olhei através do vidro transparente e liso. E meu olhar, até então frio e triste, cruzou o dela, que se encontrava no parapeito da janela vizinha. Era um mundo de luz e calor. O brilho de seus olhos invadiu e iluminou minha escuridão. Ao meu cérebro faltou o oxigênio e meu corpo quedou-se imóvel. Era impossível precisar o tempo da emoção. O tempo teria parado e o resto do mundo também? Não sei quanto tempo fixamos nossos olhares. Um átimo ou uma hora? Uma eternidade? Era preciso calcular, mas não tinha os dados necessários. O seu olhar brilhante aprisionou meus olhos, meu corpo e minhas ações. De repente, senti os globos oculares meio ressequidos, quase saltando das órbitas. Tive medo de piscar e interromper o elo estabelecido. Não pisquei. Puxei o ar de que dispunha para manter o corpo em estado de latência. Ela piscou uma única vez, longamente, sem medo de interromper ou apagar a chama. Vi suas pálpebras cobrirem os globos num movimento lento e sedutor. Não pisquei. Quis ver e viver a intensidade daquele movimento lânguido. Reabriu os olhos e sua chama deu novo vigor ao encantamento que já tomara conta de mim. Meu coração quase parou tamanha foi minha emoção; quase pisquei para lubrificar meus olhos e dar um desafogo ao coração. Não pisquei. Não pisquei por medo de perdê-la. Um estalido da velha geladeira quebrou a magia do instante. Abruptamente voltei-me, automático, para ver o barulho. Eu era só instinto naquele momento. E, óbvio, nada! Quando voltei, ela já não estava lá. Escancarei a janela e os meus olhos. Minha cabeça, todo o meu ser girava cento e oitenta graus de um lado a outro, buscando-a, inutilmente.
        No restante do dia, a janela permaneceu aberta e a maior parte do tempo eu estive debruçado nela, buscando aquele olhar penetrante e castanho. Meu universo ficou castanho ensolarado. Meus olhos perscrutavam a rua e todo o horizonte até onde a vista não mais pudesse distinguir imagens. Inútil! Tornei a olhar o parapeito da janela vizinha na esperança de voltar a vê-la. Nada! Meus olhos buscaram em vão o céu em último apelo. Só o firmamento!
   O céu azul e o sol luminoso congelavam meu espírito desolado de arrependimento. Por que me voltei para ver o barulho da geladeira? Ele já não era suficientemente corriqueiro? Eu estava congelando como sempre estivera naquele apartamento repleto de solidão. Sentia frio, muito frio, principalmente no estômago. Queria tomar um chá quente, mas precisaria afastar-me da janela. Meus pés eram dois blocos de chumbo gelados. Esperava... A única e vaga lembrança que o ambiente anunciava eram os blocos carnavalescos... Desolação!
          Era cedo ainda e a rua dormia. O vento tocava carinhoso ora copos de plástico ora restos de serpentina ou confetes coloridos deixados ao longo da calçada. À noite, a rua inteira dançou e cantou músicas na voz de cantores que eu não conhecia. Minha janela, mesmo cerrada, deixava passar o som alto. Alucinados!
No meu tempo de criança e mesmo na juventude eu gostava de carnaval. O som das marchinhas era agradável e eu pulava num pé e noutro, fazendo rodopios. Ao amanhecer retornava a casa suarento e relaxado. Dormia como os recém-nascidos bem alimentados. Feliz, não atinava em nada. Não pensava!
A manhã inteira, como Tagore, eu escutei, e olhei com olhos bem abertos, e verti minha toda a alma, o corpo e instinto na rua e nas sacadas sem descanso, em procurá-la, mas só o desencanto me encontrou. Meu pequeno, quase minúsculo apartamento, tornou-se imenso para meu corpo grudado à janela. Depois de algumas horas, dei-me conta de que era inútil esperar ali. Precisava fazer algo mais objetivo, mais concreto para encontrá-la. Não sabia o quê e nem o como. Nessas coisas do inefável eu sou muitíssimo amador. Na cozinha, quis chutar a geladeira. Meus pés, pesados; eu não conseguiria, por mais que tentasse. Limitei-me a amaldiçoá-la. Seria dela a culpa? Ela nada fez senão o barulho que sempre fizera... Desconsolo!
     Eu me preparo para sair. Sonido da campainha. Exaltado, abro a porta. Era a vizinha do lado oposto, ainda fantasiada para o carnaval. Maquilagem desfeita. Lábios ressecados. Pele pálida. Olhar semimorto. Era um cadáver ambulante. Quase lhe bati a porta na cara, mas ela disse em voz temulenta “você tem um pouco de açúcar pra m’emprestar?” e mostrou um copo vazio que trazia na mão. Não respondi. Arranquei o copo da mão cadavérica e marchei para a cozinha. Enchi-o com o pó cristalino e entreguei-lhe, mudo. Ela limitou-se a me olhar com cinismo e sumiu porta adentro no apartamento que defronta o meu. Pela primeira vez na vida eu senti raiva sem razão. Confesso, senti raiva a ponto de querer esmurrá-la. Inutilidade!
   A semana, depois do carnaval, resumida a dois dias de ressaca. Na universidade, as aulas recomeçaram, mas sem alunos. Os colegas com os quais, esporadicamente, troco ideias sobre minhas pesquisas viajavam ignorantes de minha solidão. Minha cabeça estava sem prumo, o perpendículo procurava o rumo ou a profundidade do infinito onde ela estivesse mergulhada. Perdido!
Nas ruas, ando atento, expectador de um olhar. Eu não a reconheceria senão pelo olhar. Não sei, mas os olhos são iguais a muitos outros. São. Há milhares deles na cidade. Mas o olhar... Era único. Ou foi único? Parvo!
      A lembrança da luz que invadiu minha alma me atormentava e não me dava alento e me impeliu a outras lembranças. Meus pais. Na cozinha ou no quarto, em qualquer lugar da casa, viviam arrulhando meiguices. Ele a chamava “pombinha”.
E a minha pombinha onde andará? Arrulhando com outros pombos? Néscio!
       Ela está em qualquer lugar, menos a meu alcance. E aquele facho de luz que me atormenta e que agora me desorienta, onde está? Tão pequenos, aqueles olhos, e tão iluminados eram. Três dias de ausculta, de observação meticulosa, e nada! No sábado, resolvi andar pela praça onde tudo se vê, tudo se faz, tudo se ouve. A praça pública. Deus! Eu disse Deus? Disse. Talvez ele me socorra. São tantas as que podem ser ela. Tenho de encontrar um olhar... Não são olhos, mas o olhar, aquele enigmático, penetrante, estonteante olhar. Castanho ensolarado.
         Na praça, alguns seres são autômatos; outros, vida. Ela é vida.
Luz. Ambígua! Imagem indefinida, ambivalente. Encontrá-la desvendaria o encantamento? Nunca amei uma imagem. Amo um olhar ensolarado e penetrante. Contundente! A praça? Ah, a praça! Na praça há muitas iguais a ela. Terei de conferir, examinar, comparar o olhar. Os olhos não bastam. O olhar... Na minha caminhada pela praça, meus olhos pulavam de olho em olho, mas não se deparou com nenhum olhar. O olhar!
     Voltei a casa desolado triste consternado desamparado. Só! Restou-me a condição de perquiridor através da janela. Quantas possibilidades oferece uma janela? De acordo com Houaiss eletrônico (2009):

Janela s.f. (sXIII) 1 abertura ou vão na parede externa de uma edificação ou no corpo de um veículo, que se destina a proporcionar iluminação e ventilação ao seu interior 2 p.met. esquadria de madeira, metal etc. que se coloca nessa abertura; caixilho ger. munido de vidro com que se faz a vedação móvel de um vão de janela 3 infrm. qualquer buraco, abertura ou rasgão 4 num texto, espaço em branco onde falta uma palavra; lacuna 5 ANAT designação comum a duas aberturas na parede interna da caixa do tímpano 6 ASTRN área situada nos limites da atmosfera sensível da Terra, por onde precisa passar a espaçonave, para que seja bem-sucedida a sua viagem de retorno 7 CINE FOT numa câmara ou projetor, abertura retangular em uma placa opaca que delimita a área a ser fotografada ou projetada 8 CINE FOT em certos instrumentos ópticos, abertura por onde são feitas as leituras em índices fixos 9 FÍS.NUC folha delgada de determinado material, ger. us. em detectores, que permite a passagem de um feixe de radiação ou de partículas 10 GRÁF buraco na fôrma tipográfica causado pela queda ou retirada de tipo(s) 11 GRÁF espaço em que se abre um claro na folha impressa, por interposição acidental de um corpo estranho entre os tipos e o papel, ou deliberadamente, em formulários e documentos diversos, para ser preenchido pelo usuário com os dados que faltam ou para ali se encaixar um novo texto 12 GRÁF abertura praticada em folha de papel, cartão, envelope ou embalagem, coberta ou não por uma tira transparente, para deixar ver o que está por baixo 13 INF trecho retangular de tela no qual um documento, arquivo, mensagem ou imagem é exibido total ou parcialmente por um programa ou sistema operacional 14 RÁD TV intervalo deixado nos programas para inserção de comerciais janelas s.f.pl. fig. 15 os olhos j. atmosférica de rádio ELETMAG região do espectro eletromagnético em que as ondas de rádio atravessam facilmente a atmosfera da Terra • j. basculante janela subdividida em seções ger. de vidro que, acionadas por básculos, abrem-se, girando em torno de eixos horizontais • j. cega janela simulada apenas por um guarnecimento exterior, sem abertura, para fins decorativos • j. da cóclea ANAT m.q. janela redonda • j. de guilhotina aquela composta de dois meios caixilhos móveis, ou um móvel e outro fixo, situados em planos diferentes e paralelos; o movimento se faz na vertical, com o(s) meio(s) caixilho(s) deslizando para cima e para baixo entre ranhuras • j. de lançamento ASTRN intervalo de tempo dentro de cujos limites deve ser lançado um míssil ou uma espaçonave, para que cumpra a sua missão específica; janela espacial • j. de peito aquela cujo vão não atinge o nível do piso, cobrindo a metade inferior do corpo de quem nela assome ou se debruce • j. de sacada janela aberta ao rés do pavimento, quando este é em andar alto; porta-balcão • j. do vestíbulo ANAT m.q. janela oval • j. espacial ASTRN m.q. janela de lançamento • j. galáctica ASTRF qualquer uma de determinadas regiões próximas ao equador da Via Láctea, onde há baixa absorção de luz pelas nuvens interestelares, de tal modo que algumas galáxias externas situadas a grandes distâncias podem ser vistas através delas • j. óptica ÓPT faixa da radiação eletromagnética que atravessa a atmosfera e que se encontra em torno do espectro visível • j. oval ANAT abertura entre a orelha média e o vestíbulo, a cuja membrana está presa a base do estribo; janela do vestíbulo • j. pivotante a que gira em torno de um eixo vertical • j. redonda ANAT abertura entre a orelha média e a cóclea; janela da cóclea • entrar pela j. fig. furtar-se aos trâmites normais (provas, concursos, apresentação de títulos etc.), para ingressar em uma instituição, exercer um cargo, conseguir um benefício etc. GRAM dim.irreg.: janeleta, janelícula, janelo ETIM lat.vulg. janùella, dim.de janùa,ae 'entrada de um país' HOM janela(fl.janelar).
       
        São muitas as possibilidades. Tentarei tantas quantas forem possíveis. Talvez, na janela, eu encontre uma saída para a minha solidão. Hoje, começarei pelo primeiro conceito. Abrirei as janelas a fim de iluminar e ventilar este apartamento escuro e triste. Qualquer dia desses, abrirei um rasgão na vida e me libertarei. Afinal, amanhã, outro dia

[1] Este conto foi classificado em 3º lugar no XXXIII Concurso Internacional Literário e está publicado no livro AMANHÃ, OUTRO DIA. Org. Edições AG.—São Paulo: All Print  Editora, 2011.
Sena Siqueira
Enviado por Sena Siqueira em 12/12/2011
Reeditado em 12/12/2011
Código do texto: T3384877
Classificação de conteúdo: seguro
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