Invernadas I (dezembro de 2011)

“Aqui dentro, em mim, há um mormaço que sobe de dentro em direção à pele e que não se dissipa facilmente com o ar. Dentro, tudo é verão, tudo é belo, é eternamente claro e firme. Fora, a realidade impõe sua forma com o vento forte e a chuva torrencial que anda levando embora muitos lares. Na televisão, tudo é caos.”

“Mas, ainda que lá fora faça frio e tudo se assemelhe ao inverno mais rigoroso (com muita chuva e vento), dentro de mim tudo caminha em direção ao verão, faz calor, e é ainda dezembro nos trópicos brasileiros.” Prosseguiu, argumentando para si mesmo: “Dentro de mim, sou todo amor e carícias; fora, sou como um pássaro ferido que inspira cuidados.”.

“Uma grande paixão de amar sem amar a alguém,” eis o que poderia definir seu verão interno, seu verão do final de ano, verão que foi feliz imensamente então ao encontrar um lugar para existir debaixo da própria pele. Reinaldo estava preocupado com o dia que acabara de começar. Por ele, voltaria a dormir. Mas tinha que levantar-se para trabalhar.

Nesse momento, apoiado na beirada da cama do quarto de dormir, tomou à mão os dedinhos do pé e aparou meticulosamente as unhas. Seguiu argumentando para si mesmo que a invernada que lhe havia pegado de surpresa em plena primavera, e a caminho do verão, era injustiça. O tempo de se pensar o natal desse ano deveria ser diferente: quente e acolhedor.

Seria, nesta inversão da lógica climática, janeiro um mês tão gelado como o mês de São João? Não poderia ser. Mas o inverno do lado de fora da janela da casa parecia ter vindo mesmo para ficar; talvez por alguma bruxaria, ou conspiração dos vendedores de guarda-chuvas, o mais gelado mês de junho haveria por algum motivo chegado para ficar, agora em dezembro.

“O que vestir para atravessar a chuvosa rua em direção ao ponto de ônibus? Descubro hoje que não tenho roupas de frio para enfrentar essa invernia. Um gorro e um cachecol seriam de utilidade para mim contra o frio, enquanto que uma capa de chuvas me protegeria muito bem da chuva torrencial. No entanto, o que encontro são só um pulôver e um guarda-chuva.”

E prosseguiu Reinaldo a divagar, “Os trópicos choram. Quem sabe se o lamento de tamanha dor das populações pobres que vivem nessa nossa terra tropical não é proporcional à chuva torrencial e os vendavais que nos acometem às vezes nessa época do ano?”. Vestiu-se e desceu sonolento a escada da casa até a cozinha. Pôs-se logo a esquentar a água para o café.

Dentro, no recôndito de sua alma, o calor emanava intensamente. Era movido pelo calor da paixão por ninguém, do querer bem que encontrou equivalente no pequeno pássaro que se escondia da chuva no parapeito da janela da cozinha, enquanto mexia no fogão. Reinaldo se considerava uma pessoa de sorte pela companhia do pequeno passarinho. Um pardal.

Vira a si mesmo no pequeno passarinho: Vira-se na natureza que, assim como a dele, não se rende facilmente ao frio. Ambos emanavam, magicamente, um calor capaz de derreter toda uma montanha congelada dos Andes. Descobria ele que, da mesma forma que nas palavras de um escritor que lera na adolescência, haveria um verão invencível na alma dos dois.

A água aquecida, Reinaldo a derramou atenciosamente no filtro de papel. Nada como um café quentinho para aquecer os ânimos na manhã chuvosa. E nada como um passarinho para compartilhar um momento que, por si só fortuito, não haveria de se repetir duas vezes na presença de qualquer outra pessoa. Só Reinaldo e a pequena criatura pareciam entender isso.

Sentou-se Reinaldo na mesa da cozinha e pôde, então, apreciar o cafezinho quente e um pacote de biscoitos vitaminados. Dava-lhe prazer contar os biscoitos da mesma maneira que contava os livros da livraria em que trabalhava: “Seção de livros infantis... um, dois,... cinco, seis... vinte e um, vinte e dois.” “Seção de romances... um, dois, ...” E assim por diante.

Meia hora se passou desde o momento em que Reinaldo sentara-se à mesa para tomar o café e contar biscoitos. Comeu apenas cinco do enorme pacote. O passarinho que se escondia da chuva, este já não estava mais lá; mas só quando havia terminado o café matinal é que deu-se conta disso. Foi até a janela e tentou visualizá-lo no quintal, mas foi inútil. Não estava lá.

Chuva de verão, ou zona de convergência do Atlântico Sul, isso já não importa mais saber: A chuva dos trópicos varria casas em cidade distantes, como havia sabido através da televisão; e a chuva haveria levado também o pássaro de sua janela em busca de um ninho. “Na casa ao lado, era certo, encontraria lá um abrigo entre os galhos fartos de uma goiabeira.” Pensou.

Nos 27 anos de sua vida, não havia recordação de tamanha invernada, muito menos em uma primavera de dezembro e quase chegando ao verão. O tempo não firmava e chovia, mais e mais, sem nenhuma trégua. Ouvia da cozinha os carros patinando em poças de água no asfalto de ruas próximas da casa. Reinaldo subiu para o quarto para aprontar-se para o trabalho.

Os jeans, não havia novidade em vesti-los: Trabalhava sempre assim, de calças jeans e camisas polo. Faltava-lhe, no entanto, escolher a camisa que pudesse combinar com o pulôver de lã cinza – única peça de roupa de frio de que poderia valer-se. Pôs-se, assim, a revirar as gavetas retirando do armário suas camisas uma a uma, com cuidado para não amarrota-las.

No fundo do armário, encontrou com surpresa uma agenda de couro muito velha e muito maltratada pelo tempo. Era uma agenda de seus dias escolares. Tomou-a à mão sem nenhum desejo de folhear e, depressa, arremessou sobre a cama. Reinaldo não possuía um grande guarda-roupa, mas tinha pressa para finalizar sua busca.

Por fim, retirou de um cabide - lá no fundo - uma bonita camisa polo vermelha. Nada em redor parecia combinar com uma camisa vermelha: O tempo cinzento haveria de permitir-lhe um pulôver cinza; Mas, apenas com uma mãozinha de ânimo, Reinaldo se permitiria ousar no belo vermelho quente cor de tomate da camisa polo. Já vestido, era despedir-se da casa e sair.

Ia despedindo-se da agenda que lançara sobre a cama quando, de relance, viu na primeira página aberta uma dedicatória. Sentou-se na beirada da cama, tomando a agenda no colo para ler: “Nas profundezas de um inverno, eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível.” De Albert Camus.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 12/12/2011
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3385693
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