Pequenas borbulhas juntam-se com a espuma branca. A cerveja ainda está gelada. Assisto-as desprenderem-se e subirem, rebolando no amarelo fraco do líquido, sensuais, chamando “Vem! Vem!”
     
     Que diabos passa em mim? Que é agora esse diálogo com bolhas? “És tu, imbecil!”, diz uma voz poderosa e continua, “És tu perdido de alguma coisa. És tu faltado de algum afago, ridiculamente desesperado!”. “Como ousas?!”, indago eu ao desconhecido que ralha, “Não ouso mais do que posso por direito meu e teu!”
     
     Isto me intriga. “Quem és? Saia de trás dessa covardia e revele sua face!”, “Como queira. Apenas olhe num espelho ou superfície que projete seu reflexo patético.”. Olho sem pensar, não porque recebera tal ordem. “Mas este sou eu!”, “Como dissera, um reflexo patético…”, “Estas a irritar-me, senhor!”, “Ora que de maneira alguma queria isso e me desculpe! Só faço martelar-lhe os miolos e faço por prazer, nada cobro por isso.”, “Mas o quê?”, “Ora, nunca ouviste falar que cabeça vazia é oficina do diabo? Pois bem, não preciso de espaço grande, arrumo-me em algum que torne ao menos confortável meu labor. É tão difícil encontrar cabeças vazias de trabalho e pensamento pelos tempos de hoje. Sim, trabalho e pensamento, porque mesmo muitas à deriva no mar do desconhecimento, nessa imensidão de espaço não posso mergulhar e não faria sentido.”, “Mas estou a pensar loucamente, está-me a faltar a curadora dos meus pensamentos e é nela que penso, é dela que temo a perca é dela que tenho falta!”, “Não te preocupes, garoto. Estas são as caraminholas que ando esculpindo – e algumas já havia talhado molde antes – enquanto nos demoramos nessa conversa.”, “Pois saia daí! Vá ao diabo que te carregues!”, “A oficina fecha-se ao fim da obra, ainda não é tempo. E o diabo há de me carregar, ou melhor, suas pernas, ou as minhas. Esquentara tua cerveja esta conversa. Agora não me amoles mais e deixe-me trabalhar!”.

     Não há borbulhas mais. Pequenas que fossem, não mais existem, extinguiram-se de meu copo. O líquido escureceu e a sensualidade pousou as nádegas já secas numa cadeira de rodas, tão velha quanto ela agora. Não posso beber.
Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 10/01/2012
Reeditado em 10/01/2012
Código do texto: T3432518
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