O Vômito de Dário.

A fome era muita. A sede também. Tinha outra fome de outra coisa a qual não sabia ao certo. Uma fome doida de quem vai receber seu primeiro salário. O primeiro salário de Dário veio como um bálsamo em sua vida, a glorificação máxima de um jovem adolescente de classe média baixa no Brasil que a duras penas consegue seu primeiro emprego. E quando recebe seu primeiro salário então... Aí a realização é plena.

Dário teria que viajar trinta quilômetros até a cidade vizinha a fim de sacar o dinheiro na agência de um banco que não tinha em sua cidade. Era assim...

Disseram que o pagamento cairia na conta somente depois das três da tarde. Deste modo, antevendo o prazer, Dário mal conseguiu dormir na noite anterior. Rolava na cama e ficava a imaginar as situações que o levariam até o paraíso.

Acordaria cedinho a fim de vivenciar ao máximo seu grande dia. Iria ao parque praticar barra e ao meio dia, após as refeições, pegaria o ônibus que em quarenta minutos o deixaria na cidade onde deveria sacar a grana.

Tudo planejado, não foi o que aconteceu. Dário acordou cedo demais. Estava ansioso para botar as mãos em seu sofrido salário do mês e realizar alguns de seus pequenos desejos: comer o que quiser, beber o que quiser e na hora que quiser, de acordo com as possibilidades, comprar um cd de sua banda preferida (Garotos Podres), ou mesmo pagar alguma coisa para alguém, apenas para mostrar que tem caixa, que tem poderio aquisitivo, emprego, responsabilidade, que agora é homenzinho, etc, etc, etc...

Naquele tempo Dário era um jovem muito agitado, para não dizer hiperativo, inquieto.

Não almoçou, pegou o ônibus das dez e rumou até a cidade vizinha. Lá ficou zanzando até o horário de sacar o salário.

Quando finalmente conseguiu sacar o dinheiro, um brilho intenso nos olhos e uma agilidade descomunal tomaram conta de seu ser. Seu corpo parecia flutuar nas calçadas daquela cidade. Parou em uma salgadaria e comeu três enroladinhos de presunto e mussarela, a fome era muita, estava sem almoço. Comeu os salgados acompanhados por uma coca cola de seiscentos miligramas. Andou mais um pouco e parou na loja de cd piratas e comprou o último lançamento da banda Garotos Podres, seu sonho de consumo, o álbum “Vomitaram no Trem”. Andou mais um pouco, com a barriga cheia, cd na sacola, sorriso escancarado e passos largos. Atravessou a avenida e decidiu tomar uma vaca preta de milho verde. Adorável, tomou logo duas, sentado, paquerando o encarte do cd.

Eram quase cinco da tarde, sexta feira, dia tórrido, e Dário queria fechá-lo com chave de ouro, antes de pagar o ônibus das cinco de volta para sua cidade querida. E decidiu que aquela ocasião, longe de casa, longe dos olhares recriminadores da família, com dinheiro no bolso, dinheiro seu, surrado, numa sexta feira ensolarada, nada melhor do que selar a felicidade com uma ou duas latinhas de cerveja, ah, bem geladinhas!

Faltavam quinze minutos para as cinco da tarde. O ônibus ainda não chegara. Próximo ao ponto, um boteco chamado Bar do Ponto, fresco e limpo com cera vermelha, era o que faltava a Dário. Felicidade completa, dizia.

Entrou, recostou-se no balcão, encheu o peito e pediu:

“Uma latinha de Skol, por favor!”

O dono do bar ficou meio cabreiro com o porte do rapaz, suspeitando menor de idade, mas mesmo assim, fez de conta que nada sabia, e entregou a latinha a Dário, que, mesmo ululante de felicidade, ainda resmungou um pouco, dentro de sua razão:

“É, não está tão geladinha, mas está bom!”.

No que o dono do boteco respondeu:

“As bebidas estão todas assim. Colocamos agora a pouco”.

Dário deu de ombros, virou de lado e, mesmo em pé, segurando a sacola e olhando para o céu azul lá fora, entornou a lata até sua última gota, num prazer incomensurável para sua vida. Fora como que a carta de alforria, a libertação da menoridade, da incapacidade, mesmo que àquela altura ainda era, juridicamente falando, relativamente incapaz.

Não satisfeito, pediu outra, desta vez mais autoritário, momento em que o ônibus estacionou no ponto.

O ônibus estava lotado. Dário teria que ir em pé, espremido junto às senhoras e senhores idosos que haviam ido até aquela cidade a fim de sacarem os proventus de suas aposentadorias. As senhoras estavam perfumadas, perfumadas além da conta, perfume quase vencido. Um odor agridoce pairava no ar, misturando-se a suores diversos.

No balanço do ônibus, Dário se apoiava em sua haste, a fim de se equilibrar, e com a outra mão bebia sua cervejinha já morna, mas paga com seu dinheiro...

De súbito, começou a se lembrar dos enroladinhos que boiavam em seu estômago juntamente com o creme de sorvete de milho e a cerveja.

De repente, sem dar aviso, veio a tontura e o “caldo infernal”. Dário deixou jorrar de uma só vez tudo que havia consumido até então, um líquido azedo, fétido, com pedacinhos de enroladinho, dando um banho nas pobres senhoras aposentadas.

Com o tumulto generalizado, incontrolável, pessoas gritando e vomitando ao mesmo tempo, alguns, inclusive, tentando saltar pelas janelas, o motorista parou o ônibus, devolveu o dinheiro da passagem a Dário e, com um safanão, mandou que o mesmo descesse imediatamente do ônibus.

Nos meses seguintes, Dário passou a evitar os excessos...

SAvok OnAitsirk, 12.01.12.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 12/01/2012
Reeditado em 13/01/2012
Código do texto: T3437065
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