O Despertador

Os jornais daquele dia (não importam quais) noticiaram em letras garrafais: “MATARAM-NO COM REQUINTES DE CRUELDADE”, “ASSASSINO ESQUARTEJA VÍTIMA”, “MATOU, FUGIU E NÃO DEIXOU PISTAS”, “POLÍCIA PROCURA SUSPEITO POR CRIME BÁRBARO” etc. Emissoras de rádio e televisão cobriram toda a tragédia e deixaram a população ainda mais preocupada. Naquele dia e por muitos outros não se falou de outra coisa a não ser do assassinato.

A mídia fez uma biografia da vítima. Biografia que não apresentava defeitos. A vítima nunca tivera passagens pela polícia e nem respondera por qualquer ato ilícito. Por que então o mataram? Seus familiares e amigos estavam abatidos. Fora mais uma vida para o céu. Ou será para o inferno? Bem, isso não importa. O que importa é que alguns, não simpáticos ao morto, comemoravam.

Mais de um ano passara sem nenhuma pista do assassino. Nem os melhores detetives conseguiam resolver o mistério. O pior é que tudo se anarquizara. Não havia mais ordem nacional ou mundial. Todas as coisas estavam disponíveis apenas para a caça ao assassino do grande ídolo. Portanto, não havia recursos ou vontade para mais nada. Enquanto isso, e como sempre, os menos favorecidos e os completamente marginalizados pela sociedade continuavam a ser o lado mais fraco da corda. Aquele que sempre arrebenta.

Devido ao total desaparelhamento estatal, ou melhor, do desvio da máquina pública para essa busca insana e impossível, o inferno parecera subir à terra – se já não o era. As estatísticas de roubos, homicídios, desemprego, uso e tráfico de drogas e armas, contrabando etc; subiram a níveis inimaginários. A corrupção, antes forte, mas velada; escancarara-se absurda e completamente. O caos instalara-se. O povo estava perdido. Tudo estava perdido.

Depois de muito tempo, prenderam um suspeito. A imprensa, faminta por escândalos e sedenta por sangue, fez um estardalhaço tão grande quanto o de Hiroxima e Nagasáki. Não demorou muito e o preso confessou o crime – até onde se soube não houve tortura. Levado ao banco dos réus aconteceu um fato inusitado: não houve advogado algum para defendê-lo. Crise de consciência? Medo? Nunca se saberá!

No dia do julgamento leram o processo, desde o assassinato até as conseqüências causadas. O Réu, de modo frio e sem demonstrar culpa ou arrependimento, confirmou tudo. Então o Juiz fez a inevitável pergunta:

- Por que fez tudo isso?

- Excelência, ele deseducou meus filhos, desempregou a mim, familiares e amigos, permitiu a morte de bebês nos hospitais e de idosos nos asilos, foi descuidado com suas funções básicas de garantir segurança, educação, lazer, emprego e saúde para todos...

- Mas isso não dá ao senhor o direito de...

- Dá o direito sim, pois os meus não foram respeitados! Por que, então, haveria de manter-me inerte e covarde diante de fatos tão lastimáveis?

- A Justiça está...

- A Justiça está vendida, corrompida e não atende a todos. Por isso a fiz com as próprias mãos. Estou plenamente ciente dos meus atos e das suas conseqüências. O Meritíssimo pode aplicar-me a pena máxima permitida no Código Penal, pois a pena capital já me foi decretada desde o dia em que nasci.

O Juiz decretou recesso na sessão para que os Jurados pudessem se reunir e dar o veredicto de culpado ou inocente. De repente, rumores fizeram-se ouvir vindos das ruas frontais ao Tribunal. Era uma Multidão despertada miraculosamente para a realidade e acompanhava o Julgamento por um telão do lado externo. Mais uma vez a mídia não podia deixar de aparecer.

Como que acordada de um estado de letargia secular, a Multidão sentiu que aquele homem, ali massacrado pelo júri e pela acusação, fizera o que todos deveriam ter feito há muito tempo. Assim gritava em uníssona voz:

- INOCENTE! INOCENTE! INOCENTE!...

Enquanto isso, lá dentro do Tribunal, o Juiz – findado o recesso – proferiu a sentença:

- O Réu foi condenado pelo crime de homicídio doloso contra o Sistema. Considerando os requintes de crueldade com que o ato foi praticado e desconsiderando sua primariedade, o Réu deverá cumprir 30 anos de reclusão em regime fechado, sem direito à condicional ou qualquer outro tipo de benefício. Faça-se cumprir desde já o que este Tribunal decidiu.

Mais uma vez a voz do povo não fora ouvida e o defunto ressuscitara. Só que agora o lado mais fraco da corda, os marginalizados, os pobres, o povo enfim, não aceitou. Os Revoltosos invadiram o Tribunal, libertaram o Réu e decretaram o fim de todas as arbitrariedades. Criaram um novo mundo, uma nova sociedade e um novo SISTEMA. Tudo se tornara perfeito.

No começo foi difícil destruir velhos hábitos, solucionar antigos problemas e implementar novas idéias. Porém, com o passar dos tempos tudo se acertou e a paz passou a imperar. No entanto, como nada é eternamente perfeito, um dia houve um enorme barulho e...

João acordou com o barulho do despertador. Tudo estava na mesma. Era preciso trabalhar.

Cícero Carlos Lopes – 27-11-03

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 13/01/2012
Reeditado em 27/11/2013
Código do texto: T3439474
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