A Medida e o Gume

- Desce uma cachaça! - segue um tapa no balcão ensebado.

O vendeiro olha o tipo. Desconfia logo. Nunca vira o cabra por aquelas bandas.

Entorna.

Palmeia o fumo, alisa a palha, enrola. Dedos grandes, amarelos, tisnados.

- Dá cá a brasa! - troveja.

Tremeluzem brasa e vendeiro.

À voz pequena, os locais burburinham. Quem diabos será esse tal? A que veio?

Crepúsculo. O céu da cercania, tísico, expectora sangue no horizonte adentro. Tinha febre o céu.

A noite apeia-se.

Amava a noite. Esperava por ela, sempre. Com ela seguia, cioso do ofício. Ontem mesmo, foram cúmplices. Testemunhara apenas um enorme mandacaru, de braços abertos, como rendido de susto, que aflorava em plena seca - sinal de chuva! - dizia o povo.

- De pé, sujeito! Tenha culhões!

Havia tomado uma vereda, em meio à sarça, que se ia abrindo a esmo, entre xiquexiques e pedras de afiar.

- Vam'bora, macho! Pra buli c'oas fia alêia, imprenhá as besta e se escafedê, bem que tu é manhoso!

Malgrado o mijo, o infeliz grunhia, ressentindo-se ainda da metade do incisivo que perdera com um bofete, quando fora surpreendido e quis fugir.

Não o desejava machucar. Se o fez foi porque mereceu, só! Desgostava-lhe fazer sofrer os viventes. Cumpria o trato, rápido, indolor. Pronto! Pouco adiantava lho pedirem para surrar, arrancar escrotos... O acerto é só para despachar. O coisa-ruim que tirasse proveito! Se queriam dor, fizessem por si, ou se arranjassem com um outro, oras!

Homem religioso, não faltava missa ou ladainha. Acendia velas, muitas velas.

- É aqui!

Uma nuvem, vagabundeando, alto, cobriu a Lua. Queria poupá-la.

Não teve tempo o miserável de suplicar. Abrupto, trespassou-lhe, cheio, um único projétil, esgarçando o peito. Caiu sentado, o mandacaru servindo de lápide.

Também lhe desagradava essa história de últimas palavras. Isso impingia sofrimento moral. E terminaria sofrendo outrossim, deparado com os olhos esbugalhados da rês, que pressente o abate.

Fez o sinal-da-cruz e se foi.

E disso tudo se lembrava, pitando a porronca. Não sorria. Nada por que sorrir.

Ardia-lhe uma azia que vinha da boca do estômago e subia até a boca. Nunca, nunca se esquecia.

- Bota mais uma! da branca!

Queima com o olhar a freguesia à porta. Bastou para desfazer o grupo.

Entorna.

- Quanto foi?

Pagou com dinheiro graúdo. O vendeiro ia, já, dar-lhe o troco.

- Não. Me mandaram dizê que o troco é pra ti.

Jazeu o vendeiro entre bolachas-marias e feijões-de-corda.

Sinal-da-cruz.

2007, 10 Jan