Revisão de Vida

Voltava para casa, sozinha, quando teve um crise de labirintite e bateu o carro. Viu o mundo girar e sua vida passar como um filme diante de seus olhos enquanto uma lágrima rolava. Apagou, sucumbiu. Mas alguém lá de cima gostava muito dela... Depois de segundos seu coração voltou a bater – foi reanimada pelo sopro de vida do desfibrilador. A vida voltou; não por completo, porque ela entrou em coma.

Como o corpo estava bastante ferido, a mente julgou que era melhor a moça “sair de si” para não sentir dor. Ela sentia que estava flutuando enquanto se lembrava dos pais, do irmão, de seus primeiros passos, da infância... Era como se estivesse vivendo tudo de novo. Sentiu novamente a doçura de ser menina, de ter o mundo nas mãos; brincou e sorriu, sem se preocupar com o resto.

Tudo parecia tão bom, mas ela ficou mocinha antes do planejado; e veio a adolescência – a “maturidade” precoce – e com ela os problemas se agravaram. Ela crescia aprendendo a não confiar demais nas pessoas. Muitas vezes sentiu-se sozinha, oprimida, quis cortar os pulsos, mas não teve coragem... Apesar de tudo, amava a vida e seu corpo – aquele que algumas vezes julgou impuro; e quando vinha a vontade de derramar seu sangue, lembrava que alguém já tinha pago um preço muito alto pelo seu resgate.

Nunca entendeu como, às vezes, o dinheiro pode valer mais do que a amizade ou porque as pessoas ligam tanto para a aparência. Quanto mais pensava, percebia que isso também estava impregnado nela e sentia medo, sentia nojo de si mesma e engolia esses pensamentos, mas não os digeria em seu íntimo e chorava desolada.

“Aqui se faz, aqui se paga”... Vingança, rancor, intolerância... Quase adulta, ela observava a “ordem” do mundo racional dos adultos e desejava não ter passado dos 15 anos. Contrariada, imaginava que certas coisas nunca teriam solução e se perguntava onde encontraria as respostas. Será que deveria acreditar em justiça?

Queria viver, mas preferia acreditar em sonhos e continuar protegida pela ilusão de seu mundinho porque ali ninguém poderia lhe fazer mal. Tantas coisas não desejara ouvir nem ver, mas era obrigada. Aquela era a vida.

Agora moça, ainda sentia saudades do irmão que morava longe, cursava Letras e ainda se apegava a todos os livros que lia – a idéia de fazer uma biblioteca surgiu quando ela estava no Ensino Médio. Também não suportava ver relógio parado e desistiu da idéia de aprender a cantar todas as músicas que gostava; mas ainda queria fazer algo especial, acreditar na bondade das pessoas e entender (ou mudar) o mundo. Queria ser diferente, ser feliz. Foi então que ela se lembrou do dia do acidente e retornou de seu “exílio”. Começou a sentir seu corpo, mas não havia dor, apenas alívio.

Algumas pessoas estudam sobre Deus durante anos, porém, poucas têm a experiência que ela teve. Ao abrir seus olhos, depois de três meses em coma, sorriu, porque teve a certeza de que milagres são possíveis: VIVER é o maior milagre. Desde então viu o mundo com olhar especial e passou a agradecer – todos os dias – por cada célula de seu corpo, por cada cachinho de seu cabelo, pelo brilho nos olhos, por cada respiração... Naquele dia parecia que as horas não passavam, e ela só queria respirar, fazer sua prece e dizer “acabou”.