O bom de garfo (janeiro de 2012)

Passos no escuro: Gino, um compulsivo por comida, se espreme na porta da cozinha que dá para a sala de estar de sua casa. Nas mãos, um prato de confeitos de padaria e um prato de macarronada ao molho bolonhesa. Não se preocupa em que horas sejam, e de fato são altas horas de uma madrugada de um dia de semana. Preocupa-se apenas em não derramar nada.

Pensa no que ouviu de sua namorada no dia anterior, “O que vale na vida é o amor vivido, todo amor recebido, o amor dividido, compartilhado.” Na penumbra da sala de estar, caminha a passos vacilantes sobre o que seriam almofadas e, com dificuldades, amoita-se no sofá, sentado de frente para o aparelho de televisão. Amava sua namorada Patrícia, tinha certeza.

Mas, amor ou comida? É confuso tentar compreender de que maneira Gino conseguia pensar em amor tendo nas mãos seguramente dez mil calorias divididas entre os vários doces e o prato de macarronada. Mas, para ele, não havia com o que equivocar-se. As palavras de sua namorada no dia anterior surgiam em sua mente como mais um bom aperitivo para a refeição.

Nervosamente acoplado à poltrona, seus dedos saltavam de um canal para o outro no controle remoto da tevê; sem, entretanto, deter-se em nenhum. Havia muitos programas de variedades, previsão do tempo, e notícias internacionais de hora em hora na tevê a cabo. Gostava dos canais de filmes, mas nesta madrugada não havia o que lhe valesse a pena.

Demorou-se um pouco no canal de variedades, mais especificamente em um programa de variedades da tevê norte-americana. A mulher que era, supostamente, a mais gorda da América, estava sendo entrevistada. O corpete extremamente justo em seu enorme corpo negro chamou-lhe atenção. Comicamente, a mulher estava vestida de Mulher Maravilha.

Também não se deteve muito tempo ali: o difícil exercício de comer e de assistir televisão impedia que devotasse atenção a qualquer canal por mais que um punhado de minutos. Por fim, deixou o canal sintonizado no Canal de Compras, e o controle remoto jogado ao chão, sobre o tapete e rente à sua poltrona.

Seus quase duzentos quilos maciçamente distribuídos por um metro e oitenta de altura eram coisa séria, e Gino sabia disso. Mas, quando aparecia à sua frente qualquer sinal remoto de ansiedade, não conseguia conter o apetite voraz. Fazia terapia para melhor compreender as desrazões de sua gula e assim despotencializar seu apetite voraz; mas nada disso adiantava.

Quando estava engatado em um novo “lanchinho noturno”, lembrava as palavras que lhe asseguravam amor incondicional, as palavras recorrentes de Patrícia, que repetidamente asseguravam-lhe jamais abandoná-lo, fosse qual fosse o motivo. Não era obesa nem compartilhava da compulsão nervosa de Gino, mas o amava e isso lhes era suficiente.

De repente, as nuvens do céu fizeram-se ouvir e a atenção de Gino foi atraída para o lado de fora da casa. Uma tempestade aproximava-se, trazendo trovoadas sonoras e uma ventania que parecia tão forte que seria capaz de carregar as árvores da rua. Assim entretido, Gino deixou os pratos já vazios no chão, e posicionou-se estrategicamente na janela da sala.

A madrugada era silenciosa, não fosse a tempestade que se aproximava. De fato, não se via nada ou ninguém na rua. As árvores torciam de um lado ao outro, fazendo muito barulho, e algumas folhas iam juntando-se no parapeito da janela da casa. Alguns relâmpagos riscavam o céu de um lado para o outro. Pensou por um instante mais em Patrícia e retornou ao cômodo.

Filosofar à espera de uma tempestade, às quatro horas da manhã, era um luxo que não poderia dispensar. Assim, havia um pudim de pão e um prato de goiabada que não lhe dariam muito trabalho para comer e, também havia pensar no significado da vida segundo Patrícia, “O que vale na vida é o amor vivido, todo o amor recebido, o amor dividido, compartilhado.”

Boa filósofa Patrícia, que em palavras inocentes tocava no que havia de mais profundo da alma de Gino. É verdade que havia ainda a goiabada e o pudim de pão... Mas as palavras dela não haviam sido pronunciadas em vão: O amor de Patrícia seria todo o remédio de que precisava Gino para curar a compulsão, faltando-lhe no mais apenas a força necessária para lutar contra.

A chuva, que ameaçava cair violenta, veio em gotas muito fininhas e quase não se fez notar no contato com o vidro da janela. Chuviscava e Gino desafiava os trovões barulhentos ao atravessar a porta da cozinha onde ia buscar seus aperitivos. Além dos doces, equilibrou nas duas mãos até a poltrona, até a sala de estar, um copo grande de leite.

Na tevê, a entrevista com a redonda Mulher Maravilha já havia terminado havia muito, mas Gino teve a vontade (e a coragem), para buscar vê-la ali novamente: Sintonizou outra vez no tal canal norte-americano de variedades, mas não estava mais lá a mulher mais gorda da América. Sentia-se desapontado e desligou o aparelho de televisão, pondo-se a filosofar:

Qual a utilidade do ser humano? Há utilidade em quem trabalha e, por conseguinte, haveria vergonha em quem não o faz, em quem não trabalha? Haveria, oposto a isto, algum valor em quem só ama, em quem só sabe gostar de amar? Todas estas questões faziam nenhum sentido... E toda a verdade se encontrava apenas no “ser amado” de Patrícia. Somente nisso.

A chuva, que chegara tímida, batia agora com força nos vidros da janela. A manhã surgiria logo, desbotada e insossa, e não demoraria muito o sol nasceria, totalmente, ofuscado pela cor cinza das nuvens de chuva. A ventania, que não dera trégua desde o começo, terminaria por arrancar por completo a possibilidade de que o tempo se firmasse.

No escuro da sala de estar, Gino tomou às mãos os pratos e o copo vazio de leite do chão. Com as mãos abarrotadas de coisas, furou o escuro da penumbra da casa em direção à cozinha. Na cozinha, uma grande quantidade de coisas amontoadas sobre a pia – a maioria pratos e copos – mas também as caixas das delícias que comera e que entulhavam agora a mesa de almoço.

A compulsão por comida fez com que abrisse um pacote de rosquinhas de leite cobertas de açúcar de confeiteiro. Não estava nem triste nem alegre, pensar não era o seu forte, já que a compulsão pela comida o deixava cego. Filosofar já não lhe interessava mais: neste instante, o que mais importava eram as rosquinhas. Ficaria a cargo da terapia solucionar seu problema?

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 19/01/2012
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3448742
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