Affair & Vaidade
Vira a esquina. Segue.
Assaltavam-lhe pensamentos. O dia resistia em raiar. Dentro de si, a noite passada. Ruminava...
– Não era pra ser assim, não era!
Segue. Fita o meio-fio. Conta os arremates da calçada, como para afastar a idéia fixa. Atormentava-se.
Sopra uma brisa encanada.
Atalha por uma viela e segue.
As putas, derreadas sobre os peitoris, ou estendidas nos umbrais, regateavam o saldo que restara da lida.
Uma mostra a mama, oferece-lha: farto desjejum.
E farto estava ele. Batessem-lhe a carteira, não o perceberia.
Era conhecido ali. Reinava, mesmo. Tentaram golpes de Estado para lhe despojar o mandato. A coroa terminava sua, sem sucessores.
Prodigalizavam-lhe fatos e tantos feitos que muitas daquelas mulheres se deitariam com ele, gratuito, só para se deixarem ungir, figurar entres as páginas das crônicas de cabaret.
A manhã terminara de rebentar. Pariu-se um sol modorrento.
Segue.
Ah! Como havia ansiado aquela noite! Quanto não medira e pesara!
Desejou-a desde logo, ardente. Tinham-se visto, gostado do que viram. Simples!
Encerrava qualquer coisa de singular. De todas que gozou, nenhuma lhe revolveu realmente os sentidos, mas a gana ancestral. Gozava-as. Cumpria o propósito do gênero dominante. Deixava-lhes, contra o vento, cheiro e sêmen: assegurada a majestade.
Ela, porém, rendia-lhe. Fazia-se caça – escondia o arco...
E transfigurou-se. Dela fez propósito último, motivo, razão. Obsedava-o.
Há muito a viela não acolhia seu senhor. Já não lhes queria vassalagem. Sentia ignomínia, agora. Imolava-se. Aspirava transcender pelo sacrifício.
Pôde saber-se vivo! – como o sabe qualquer que pise no cadafalso.
A princípio, quis possuí-la, por ceder ao capricho.
Esquivava-se ela. Conhecia-lhe a fama. Queria mais.
Os três meses de corte fê-lo outro. Passou a olhá-la casto e despojado, qual os santos, em prece à deidade. Adorava-a.
Receberia, bom grado, as chagas que lho quisesse dar.
Por fim, todo ele suplicava. Carecia ungir-se. Comungar.
A deusa acedeu. Tinha-lhe cativo o coração, a alma. Desceu das alturas e quis fazer-se mulher. Humana piedade.
Aconteceu que ontem, noite da grande eucaristia, tamanha sua gratidão, que de tamanho só restara mesmo a vontade.
Não entendia. Tocava-a. Sorvia seu cheiro. Tomava-a junto de si, estreita. E estreito, pequeno, sentia-se.
Fechava os olhos. Concentrava-se nas putas que se lhe deram com gosto. Comia-as em fantasia e lembrança. Abria os olhos. – Nada! – Ei-lo frouxo, pedaço lânguido de carne exangue, sem vida...
E atormentado, segue.
Sobe os degraus. Três lances. Pára no limiar da porta. Degusta a véspera. Entra. Deixa a porta escancarada. Aproxima a cadeira. Trepa-se.
Deu manchete, nas crônicas da viela: "Rei Decapitado!"
Abdicou.
2007, 14 Jan