Arremedos

Parecia sorrir. – Sim, ela está mesmo sorrindo! Candura de menina! Chegou e logo nos comoveu todos... ai!

– Meu Deus, que mundo, esse!

– Já encontraram os pais?

Ninguém do hospital sabia ao certo. A menina chegara naquela tarde, trazida por outra menina e dois garotos: companheiros seus da mesma sorte. Trouxeram-na inconsciente. O mais velho sustentava-lhe pelas mãozinhas. Os demais em cada perna. Deixaram-na ao rés do chão, no corredor infecto da emergência, em meio aos gritos estertorantes dos pacientes. Deixaram-na e, rápido, partiram, como para se furtarem a interrogatórios e bordoadas, caso lhes presumissem um qualquer delito pregresso.

Raquel – resolveram as enfermeiras chamá-la assim – tinha cinco irmãos. Moravam todos numa casinhola de barro socado, mais uma tia materna, que o pai tomara por mulher, uma semana depois que sua mãe morrera. Leptospirose, disseram.

O casebre, erigido a esmo, entre outros que serpenteavam ladeira acima, contava dois cômodos. Havia um arremedo de cozinha, fétida, com um fogareiro e umas cinco colheres de alumínio, afundadas numa bacia sebenta, e algumas latas catadas na rampa: faziam vezes de panela ou repositório. Cortadas em longitude, serviam de prato. E havia uma arremedo de sala-de-estar, copa e quarto, tudo junto, cujo único luxo era um aparelho de televisão, fiado, comprado em segunda mão dum mascate conhecido. – Arre! Eu fico aqui, cuido dos minino, güento tudo, mas sem minha novela das sete, eu num passo não! – houvera protestado a tia.

A mulher estava de barriga. Uns quatro meses, provável. Vez ou outra aparecia assim.

– Abre!

– Péra aí!

Noitinha, já. Costumavam passar ferrolhos cedo: era o decreto. Tinha um movimento de vaivém nos becos. E os que ali fora se movimentavam não gostavam de abertas portas e janelas. Não gostavam de olheiros.

– Um'bora, abre!

– Bebeu de novo, ôme?! Cachorro! Sai pra prucurá imprego e volta desse jeito, cão?!

Tabefe, cheio. Roda. Faz um ângulo raso, quase, a mulher. Recupera o equilíbrio.

– Cachorro! Cachorro! Cachorro!

Toma-a pelo pescoço. Levanta a outra mão. Cerra o punho. A presa se retesa toda. Fecha os olhos e espera. Ele emite um risinho de escárnio. Não bate, desta: era só para assustar. Liberta a presa, seguro do potentado.

O bebê chora, em lugar da mãe. O último morrera-lhes: inanição.

– Manda esse peste calá! Só serve pra isso!... chorá e cumê!

A mulher pega a criança, com enfado. Peito murcho. Suas lágrimas, como seu leite, havia muito secaram, senão da seguida prenhez, antes por fome. Mete o mamilo embotado na boca do menino, só para entretê–lo. Daquele mamilo se serve também o marido. Ela gostava.

– Cadê os ôtro? Num chegaram, inda não?

– Inda não. Tão no farol...

– Ai, se me aparecem aqui sem o apurado!... – espalma no ar a mão, ameaçador.

Tal era a rotina naquele arremedo de casa.

À noite, tarde, ajuntados todos, as crianças fingiam dormir.

Somente o casal e o bebê dispunham de rede. O restante se arrumava no cimento frio, como podiam. O mais moço gozava a prerrogativa de dormitar no tapete de estopa.

– Péra, ôme, que eu tô de bucho! Ah, péra!

Via-se, à penumbra, a silhueta do pai, nu, por sobre a rede da mulher.

– Os minino vão acordá, diacho!... Sim, desse jeito!... Bom!

Já nem se importavam mais. Era direito do pai aquilo. Era direito que lhes batesse se não traziam a féria dos doces, das esmolas. Eram direitos de macho... como devia ser direito dele, algumas vezes, não procurando fêmea sua, preferisse Raquel, ou a mais velha...

Tal era a rotina naquele arremedo de família.

Embruteceram-se com o tempo. Era-lhes indiferente a dor, o medo, um naco qualquer de alegria fugaz, quando brincavam na rua, longe das vistas do pai, de pique-esconde com os outros: companheiros seus da mesma sorte. Tudo fazia parte dum só bojo. As sensações vinham em borbotões. Não as sabiam nomear. Importava apenas, àqueles meninos, serem cúmplices: o viverem ou morrerem sob o mesmo lábaro, das mesmas mazelas. E isso os alentava. Vaga idéia de pertencimento, arremedo de solidariedade.

– Sô Zé, me dá uma ajuda pro dicumê!

Estava Raquel ao centro da segunda fileira dos carros que se gruparam na avenida, esperando abrir o sinal.

Já se habituara a que o motorista lhe fechasse os vidros. Às vezes arremessavam uns centavos, na esperança de algum deus estar olhando ação tão desprendida. E às vezes, também, faziam-lhe propostas...

Chamaram seu nome.

A menina abre um sorriso – que é sem arremedos - e com o sorriso, o semáforo. Acena ela com a mão. Faz que sim e corre para dar tempo de transpassar a via. Antes de alçar a calçada, transpassa-lhe e arremete um carro, novinho, top do ano...

O genitor de Raquel pense, e é bem possível, que esta noite Raquel não volta porque não apurou. "Fique na rua com as de sua laia, a vadia! Tanto melhor: menos uma boca!"

Acorreram seus companheiros de sorte.

No hospital, durou meia hora. Morrera ali mesmo, no corredor.

No asfalto quente, não se lhe apagara o sorriso... que era sem arremedos.

2007, 15 Jan