A MENINA DE LÁ

De acordo com Heidi Strecker Gomes (1991) o conto menina de lá, de João Guimarães é sedimentado em elementos das narrativas orais sertanejas e apropria-se de suas variantes mitopoéticas e ficcionais que “[...] se baseia em fatos reais ou saídos de sua imaginação” (GOMES, 1991 p.69) a qual reporta eventos maravilhosos envolvendo a vida de indivíduos bizarros, em torno dos quais plana o elemento sagrado. A partir desses elementos, o autor apresenta a história da personagem Maria, ou simplesmente Nhinhinha, cujo diminutivo do nome indica sua pequenez, sua fragilidade.

Rosa define Nhinhinha “com seus nem quatro anos” como a menina de lá, dotada de sabedoria, personagem que não pertence ao mundo de cá (terra), mas o de lá (céu) por ser uma criança especial, diferente das demais. Apesar de ser quieta, cabeçuda, ter olhos grandes, corpo magro e frágil, torna-se milagreira, desconstruindo, dessa forma, a idéia de que somente o forte tem o poder. A criança frágil, excluída, mostra-se especial, ganha voz e vez, tendo em vista que “ninguém tinha real poder sobre ela”.

No decorrer da história semanticamente o autor mostra a partir de palavras vinculadas ao do mundo de lá como: “Tatu não vê a lua...”, “O dedinho chegava quase no céu” , “estrelinhas pia-pia”, “Alturas de urubuir...”, “O passarinho desapareceu de cantar...”, “Vou visitar eles... [os mortos]”, “Eeu? Tou fazendo saudade”, entre outras, as quais evidenciam o fato de que Nhinhinha não pertence a este mundo “Eu quero ir para lá”, mas o de lá, como todo ser especial -mitológico.

O conto em analise é também marcado por elementos ligados à religiosidade o que se percebe desde a introdução, pela presença marcante de topônimos os quais se pode citar: a história se passa num lugar chamado "Temor-de-Deus", por trás da Serra do Mim, próximo de um brejo de águas limpas, que simboliza pureza.

Dotada de contato místico Nhinhinha não se fazia entender, nem se fazia notada, "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." dizia o pai. Assim, era Nhinhinha carregada de significação mítico-poética haja vista que a consciência mítica segundo Rogel Samuel (2002), “pressupõe uma identidade entre as coisas, uma fusão do sujeito no objeto, do visível no invisível, do natural no sobrenatural” (SAMUEL, 2002, p.25). Isto significa dizer, segundo o autor, que cada mito ou pensamento mítico equivale a uma antologia sagrada, mostrando a partir de uma manifestação do sagrado como cada realidade veio ao mundo. Nesse sentido, a partir da verossimilhança o autor aponta “a verdade do inventado”.

Dessa forma, o círculo premonitório traçado pelo conto marcado pelo destino da criança que não pertence a este mundo, mas que possui a magia do mundo encantado e fantasioso da criação artística fecha-se metonimicamente com o "caixão colorido", através do qual metaforicamente Nhinhinha deseja sua morte, ocorrendo dessa forma o confronto entre o universo terreno, em que a morte significa algo ruim, e o mundo de lá (céu), que para a personagem significa alegria, a libertação de um mundo que não era o seu.

O fundamento mítico é de tradição religiosa a partir da qual os seres humanos possuem modos característicos de se ligarem aos seres divinos, “a Mãe, [...] nunca tirava o terço da mão [...]” ( ROSA, 2001, p.67). Modos estes, adotados pelos pais de Nhinhinha, os quais aderem à experiência mitopoética, visto que acreditam que a filha milagreira realizava seus próprios desejos bem como os pedidos dos pais: desejou um sapo, logo aparece uma rã brejeira; deseja uma pamonha de goiabada, logo aparece uma mulher com tais doces; quando a mãe adoece, pedem que a faça melhorar, mesmo dizendo que não pode, ao abraçá-la a cura chega; o pai pede que traga chuva, novamente se recusa, porém o fenômeno ocorre e com ele um arco-íris o qual lhe proporciona uma imensa alegria e em meio a ela deseja um caixão cor de rosa que simboliza sua morte.

É sabido que a literatura está, como afirma Samuel (2001), na necessidade mítica de explicar a realidade. No conto roseano observa-se a precariedade das condições de vida no sertão, o qual encontra-se dominado pelo modelo arcaico, onde fenômenos de crença religiosa com matiz coletiva se proliferam.

A literatura de Rosa em análise parte da historia e do realismo transcendendo o sertão mineiro num território mítico e metafísico. Diante disso, é pertinente citar a película Deus e o diabo na terra do sol apresentada pelo cineasta Glauber Rocha o qual aponta, assim como Guimarães Rosa, um sertão nordestino carregado de fronteiras e fraturas sociais entre elas, fome, abandono, miséria, religiosidade (misticismo) e violência.

Assim como no conto, onde a personagem é uma criança diferente, que “nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes”, a película baseia-se também, em elementos e personagens não nobres, pessoas simples e sofridas. Ivana Bentes (2003) assim define o cenário do sertão nordestino,

[...] lugar da miséria, do misticismo, dos deserdados, do não-lugar, e simultaneamente uma espécie de cartão postal perverso, com suas reservas de “tipicidade” onde tradição e invenção são extraídas da adversidade. (BENTES, 2003, p. 981-982)

O sertão nordestino de Glauber Rocha difere do conto roseano em aspectos ligados pela violência utilizados como uma forma de alertar o espectador como afirma Ivana Bentes. Segundo esta autora em Deus e o diabo na terra do sol o autor “transforma beatos, vaqueiros, matadores de aluguel em agentes da revolução”, em meio à violência e ao sangue, devido ao fato de que tais personagens, caracterizados como excluídos, à margem da sociedade e ao descaso dos políticos, só poderiam ter voz a partir da violência, assim, Rocha acreditava que “somente pela violência e pelo horror o colonizador pode compreender a força da cultura que ele explora” (BENTES, 2003, p.987). De acordo com a autora a violência se justifica porque nesse caso, ela é um desejo de transformação, manifestação cultural, não apenas um simples sintoma.

Desta forma, o filme Deus e diabo na terra do sol mostra um Brasil faminto, oprimido, injustiçado e religioso, retratado de uma forma diferenciada e inovadora do ponto de vista estético. Visto que, assim como no conto de Guimarães Rosa, Glauber Rocha mostra o sertão “como um território mítico carregado de simbologias e signos de uma cultura de resistência e plena de virtualidades” (Idem, p.981).

Diante do exposto, torna-se perceptível que no conto A menina de lá Guimarães Rosa apresenta aos seus leitores uma gama de materiais considerados não-nobres pela literatura contemporânea, sob novo prisma, uma espécie de inversão do olhar. Para tanto, o escritor utiliza-se de elementos sobrenaturais agregados à religiosidade, onde fatos cotidianos acontecem num tom enigmático.

REFERÊNCIAS

BENTES, Ivana. Política e estética do mito em Deus e o diabo na terra do sol. In: ROCHA, João Cezar de Castro; ARAUJO, Valdei Lopes de. Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Universidade, 2003.

GOMES, Heidi Strecker. Análise de texto. São 9. ed. Paulo: Atual, 1991.

ROSA, João Guimarães. A menina de lá. In: Primeiras estórias. Ed. Nova Fronteira, 2001, p.67-72

SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. Petrópolis: 2. ed. Vozes, 2002.

Eliana M Pereira
Enviado por Eliana M Pereira em 09/02/2012
Código do texto: T3489238