O MATA LOBOS

Vez por outra, o caçador lá das bandas das altas do Caramulo descia aquelas serras, e aparecia lá pela taberna do ti Adelino Oliveira, em terras de Agadão, onde às vezes costumava pernoitar. Era alto, magro e, cego de uma vista, da outra vista que lhe sobrou tinha um olhar penetrante de águia caçadora. Talvez por isso, usava um boné sempre a cobrir-lhe o sobrolho do lado que lhe faltava o globo ocular. Segundo contavam tinha perdido o olho numa guerra na França ou em Espanha. Vestia jaqueta e usava polainas até à curva da perna, feitas de tiras grossas à moda da infantaria do exército daqueles tempos. Tinha fama de ser exímio atirador.

Por que calcorreava tão longos, tortuosos e ásperos caminhos, até ali, era quase um mistério. Passava o dia na taberna botando conversa fora com algum que outro frequentador, bebendo vinho ou aguardente de medronho, de que parecia gostar mais desta do que devia. Para beber vinho ou a aguardente não parece crível, ainda que na sua terra essas bebidas não houvesse. Perdizes ou coelhos nunca ninguém lhe vira pendurados no cinturão. Era aos lobos que ele dizia querer caçar. Uma ferrenha cisma que parecia ter se entranhado na sua cachimônia talvez um pouco tresloucada por estragos de guerra.

-Sempre que o caçador se despedia, quando não pernoitava por ali, –dizia: com sorte, hoje eu topo com algum lobo pelo caminho.

Suas idas e vindas se repetiam algumas vezes ao ano, e era sempre aquele quase ritual, beber, contar casos. Foram muitas as vezes que ele dali saíra rumo à sua terra, quando já se fazia o lusco-fusco, sempre com a cisma de pegar algum lobo pela calada da noite. –Sempre repetia, com sorte hoje topo com algum desses brutamontes, noctívagos vagabundos, que andam por aí a assustar as pessoas.

Certo dia, ele carregara a mais na dose da aguardente, e cismou que tinha que regressar à sua casa para comemorar a consoada com sua família, pois era noite de Natal. Seus companheiros amigos de Baco ficaram inquietos e aconselharam-no a pernoitar por ali, pois era perigosos viajar, pois, a noite já caia sobre aqueles montes, e prometia ser gelada, e logo-logo aqueles montes cobrir-se-iam de neve. De nada valeram os argumentos, e lá se pôs a caminho o tresloucado caçador.

O vento gélido e intermitente assobiava e, seus sibilos misturavam-se aos uivos dos lobos, por aqueles montes e vales, fazendo ainda mais tenebrosa aquela noite fantasmagoricamente branca.

Mas o caçador zarolho, resoluto, avança, subindo montes, descendo vales, até que, em dado momento, sentiu falharem-lhe as forças. Suas pernas se tornaram trêmulas, o solado de suas botas pareciam feitos de chumbo, seu corpo magro e esguio qual caniço verga ao sabor do vento. – Ora esta, o raio do mundo parece que está a girar ao contrário... Pelo andar da carruagem, logo sou cuspido por um desses despenhadeiros e então adeus vidinha boa de guerreiro. Benzeu-se três vezes, vezes trinta, e arrancando forças lá do fundo do seu já exaurido corpo, ainda avança por alguns minguados passos, até que por fim seu corpo cai como uma pedra por sobre aquele chão gélido e ferinamente branco. Seu espírito oblubinado pela ação do álcool fá-lo sucumbir. Dá um profundo aí, mas ninguém vem em seu socorro, sua dor só ele ficou com ela e se misturou ao vento. Num breve lampejo ainda consegue entrever sua mulher e seus filhos lá em sua casa junto à lareira, talvez a rezarem por sua volta.

O frio começa a regelar-lhe o corpo, pois é sabido que sob o efeito da aguardente, esta potencializa o veneno e o torna mais letal e, o frio, mais depressa interfere na circulação sanguínea e as batidas cardíacas ficam mais lentas, até que o coração para de bater.

Seu corpo, agora, jaz sobre a neve. Qual imenso e alvíssimo lençol o envolve, não para agasalha-lo, mas, para servir-lhe de mortalha. O matador de lobos é agora apenas um pequeno e quase imperceptível amontoado de neve em meio àquele ubíquo mundo branco, naquela noite de Natal.

Ao outro dia de manhã, quando já o sol espalhava seus reluzentes raios que a neve refletia e espalhava pelos ares, numa urgia esplendorosa de luz e cor, alguém avistou ao longe dois vultos pretos de lobos, que sentados sobre suas patas traseiras olhando o firmamento, não arredavam pé, parecendo duas sentinelas em guarda.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 13/02/2012
Reeditado em 13/02/2012
Código do texto: T3496630