A Nobreza

Estavam espalhadas pela mesa as cartas de Paris e algumas da Itália. Carla não tivera tempo de lê-las todas. O vinho ainda não a devolvera ao mundo das privações e compromissos, das dores de cabeça, do inoportuno vizinho e o seu "yorkshire". Mas era melhor estar preparada; por isso, de um só gole, esvaziou a pequenina xícara de café com limão. Apertou o rosto como se o remodelasse e espanou dele os restos de sono. Bocejou. Foi indo languidamente ao banheiro. Sentia-se enjoada; escovando os dentes, sentiu ânsias. Mas o que importa? Era uma mulher rica, de modo que ninguém poderia censurá-la se vomitasse um pouco, se despejasse a alegria do Château e do manjar ocasional preparado pelo amante. Aliás, aquele rapazola era fino; segundo diziam: “feito a cinzel”. O seu rosto exibia uma expressividade de cerâmica chinesa. Além do mais, sabia convencer, ora se portando cerimonioso à mesa, ora dado aos jogos de palavras e gestos; intercalava os ditos espirituosos com as mesuras: uma conversa pontuada com o dedo da malícia vestido com o anel da elegância. Ele tinha também o passo manso; possivelmente o assoalho lhe acariciava os pés. Carla agora queria ouvir música, mas suave, para sentir, no corpo, a leveza de um embalo. Queria girar o planeta nas mãos e gargalhar com a passagem estúpida do dia e da noite...

Temeu, no entanto, que o telefone tocasse, temeu qualquer ruído. Melhor então o silêncio que sustentava aquela sensação de altivez justificada. Mas até quando? Afinal, o dia que se abria era cruel, impiedoso, dissolvendo o "blush" daquela vida de giros e aplausos. Chegou mesmo a acreditar que tudo o que vivera há poucas horas poderia se revestir de uma malha de aço, mas os fios foram sendo desfeitos, expondo aquele corpo frágil de mulher abandonada. Fechou os olhos, apertando bem as pálpebras, contudo uma escuridão salpicada de cintilações lhe trouxe medo. Sobressaltou-se: o relógio marcava oito horas. Percorreu a sala num desvario, enxotando as lembranças como cãezinhos mimosos que se lhe agarravam às pernas. Apanhou um maço de documentos e saiu. Atravessando o corredor, lamentava as flores queimadas de sol. Não entendia por que não a regavam, deixando-as assim, murchas e negras... Antes de chegar ao portão, hesitou. Olhou de volta para se certificar se havia realmente deixado a porta fechada. O mundo lhe suplicava, ao pé do ouvido, um pouco mais de pressa. Ela, resoluta, ordenou-lhe silêncio. Examinou os afrescos da antiga fachada do casarão e pensou como seria bom se alguém lhes desse algum retoque.

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 15/02/2012
Reeditado em 10/08/2012
Código do texto: T3500029
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