1987

Achava que tudo basicamente era aquela rotina, rotina, rotina. A escola com as paredes riscadas, marcas de mãos e de sola de tênis – como conseguiram aquela marca de tênis acima da lousa verde?

O professor entrava, cabeça baixa, erguia-a. Aquela presença os enchia de medo, mas ele era apenas um garoto narigudo, rosto cheio de acnes, branco ou pálido; a camisa meio folgada em seu corpo magro, a calça jeans um pouco frouxa apesar do cinto. Isolava-se, escolhia um cantinho lá no fim, junto à janela, refugiava os olhos claros, e quem o olhasse assim de certa distancia podia crer que ele ficava engolindo a saliva o tempo todo. Seus olhos se perdiam através do vidro embaçado de poeira, enxergavam o pátio, que o servente limpava sem muita força de vontade àquela hora um pouco cálida da tarde. Rotina, rotina, rotina. O quadro cheio de equações matemáticas a giz; alguém lá a frente espirrava, outro ria, uns e outros cochichavam; uma garota deixava escapar um grito risonho e histérico, e o velho professor quatro olhos voltava-se enfezado, e tudo serenava aos poucos.

Que vida era está? Imaginava mais tarde, chutando pedrinhas nas ruas sem pavimento, empoeirando os tênis pretos nos pés, a mochila nas costas, apoiava as mãos sobre as alças já ensebadas; cabisbaixo, cismado. Rotina, rotina. Passava por baixo da mesma amendoeira, depois de ter ouvidos as mesmas piadas sem graças de colegas esparsos, de ter comido um arroz com refugo de galinha com gosto de plástico do prato da cantina da escola.

O tanque no fundo do quintal agreste cheio de capim navalha, onde a mãe se debruçava a bater roupa sobre a laje enrugada; depois as roupas dependuradas como bandeirolas num varal tortuoso. O poço de onde vinha à umidade. A cozinha com paredes engorduradas; o fogão escondendo teias velhas de aranha embaixo; cascos antiquíssimos de refrigerantes empilhados num canto amontoado de entulhos naquele mesmo fundo de quintal, quase junto à aroeira triste e alta onde pardais brincavam em galhos a tarde.

O café com gosto de pano velho, a toalha de oleado lambuzada em que ele ficava debruçado a roer sem muita vontade um naco duro de pão dormido. Depois assistia à televisão, a imagem meio deformada pela antena vacilando ao vento no telhado incerto da casa quadrada. Seriados japoneses: muita luta de karatê com monstros esdrúxulos e desformes. De quando em vez, assim à noitinha, enquanto a mãe assistia à novela, o pai sentado ao muro baixo da varanda escarrava à toa e vazio, balançando as pernas, ele refugiava-se no quarto, deitado na cama, lendo revistas em quadrinhos: super heróis resolvendo as piores encrencas de uma cidade que tinha tudo para ser pacata, mas sempre pilha um monstro esquisito para atentar, mascara-mal-encarado, enquanto o herói mal se disfarça com o cabelinho apenas, e ninguém parece notar que o mocinho some no exato momento que o herói entra em ação.

As revistas em quadrinhos vão se acumulando embaixo do colchão velho de capim, ainda com cheiro antigo de urina, do tempo que ele era menino de mijar na cama.O pensamento vaga com a revista sobre o peito repousada, o nariz parecendo maior apontando para o fio de lâmpada lúgubre, conseguindo ouvir o chororô da novela que vem da sala, o escarrar puxado e continuo do pai lá a varanda; uns “bas’noites” sem força na voz pela rua descalça. Ele pensa nas revistas que os colegas veem dentro do banheiro imundo e fétido do colégio, assim todos amontoados em círculos, lambendo os beiços, e ele olhou mesmo foi assustado, sentiu as espinhas pinicarem mais ainda.

Quanta bobagem a vida! É só isto. Só isto, e acha tão bom de se suspirar assim na solidão, virado de lado para a parede, deitado sem sono, o nariz ardendo por dentro, o peito fumigando, um arrocho delicioso na virilha. E se pudesse vivia eternamente assim. Mas não vai ser eternamente? Sabe que não, e sofre um pouquinho com antecedência ao saber que vai tudo mudar, embora gradativa e paulatinamente, tão subitamente como apenas uma passagem de um ato para o outro na coxia imunda da existência.