Os Sapatos Vermelhos de Alice


               O sapato vermelho exposto na vitrine, de súbito chama minha atenção. Imagens de charmosas mulheres a desfilá -lo elegantemente pelos corredores do prédio onde trabalho, voam pela minha imaginação se confundindo com o toc toc que quebraria o silêncio.

               Manhã de sexta-feira. Setores dispersos em trabalhos externos. Os telefones pouco tocam. Não há usuários esperando atendimento. A caixa de e-mail está vazia e ninguém solicita suporte. Tarefas organizadas. Enfim, um suposto descanso.

               O tempo abriu. O sol deu o ar de sua graça e  sorriu . O dia se aqueceu. Casacos foram deixados nos guarda-roupas. Ainda faltam mais de vinte dias para a chegada da primavera, mas, a previsão é de que venha a fazer frio novamente em setembro.  Foi o que garantiu o vendedor da loja de sapatos. Tentativa  simpática de vender-me uma bota com salto doze.

               Não me atreveria comprá-las. Bonitas, tive de concordar, porém, pouco prático usá-la em minhas caminhadas. Certamente se intensificariam as dores que sinto em minhas pernas, cansadas pelo acúmulo de passos. Geralmente tenho pressa e preciso caminhar cada vez mais rápido, o tempo parece cada vez mais curto, tenho pressa e muitos afazeres me esperam em muitos lugares diferentes.

               Tentei andar um pouco mais depressa. Ouvi o som dos meus próprios passos. Coração acelerado. Sete minutos e ainda demoraria chegar ao destino. Pensamentos voaram para longe. Um minuto apenas e um dia vivido há décadas vem subitamente à tona.


               Era verão. Intenso. A poeira colava nos pés pequenos. O sol estava escaldante e ainda eram onze e meia da manhã. Certamente quem estava na roça já sentia a fome corroer o estômago. Trabalho duro. As enchadas pesavam com o levantar dos braços. O dia começara muito cedo, antes de o sol iluminar por inteiro a plantação. O feijão logo começaria a bagear. Era preciso capiná-lo rápido. O amendoin bravo crescia muito repidamente. Ganhava caule. Folhas vistosas faziam sombra sobre a fileira da plantação.

               Chorava silencisa. Andava. O peso do embornal pendia o pequeno corpo. A ponta de dois dos dedos da mão direita latejavam. A queimadura deixou a pele branca, cozida. Insististentemente sentia o coração pulsar no ferimento . Era o auge dos seus oito anos.

               Não era tão comum que a mãe fizesse pudim. Raramente o faziam. Não se dispunha de leite, o pouco que conseguiam era para a mamadeira da menor, que levava também um pouco de amido por vezes de milho, noutras, de arroz para quando a barriga tivesse desandado. E uma dose de açucar .  Doçura.

          Naquele dia as crianças ficaram em polvorosa, verdadeiramente empolgadas. A calda de açucar queimado brilhava. Era um chamativo. - Se eu passar o dedo bem na beirinha, não vai ter problema. Pensou ela em lambiscar o doce que ebulia. Agiu. Teve a idéia de passar, não um, mas dois dos seus pequenos dedos na calda ainda borbulante.

               Além do peso das marmitas com a comida: feijão preto, arroz, um pedaço de suã de porco frito, cujo armazenamente se dava dentro da lata de banha, ia uma porção de couve manteiga refogada e um punhado de farinha. Também, a garrafa térmica levando o café quente, recém passado. O líquido escuro era degustado o tempo todo pelos homens da casa. Não podia faltar nunca.

               Alice seguia. Nos pés pequeninos, o vermelho do sapatinho reluzia. Era puro contentamento. Foi mesmo por sorte terem-no encontrado no brechó da cidadezinha que a via correr por aqui e acolá. A mãe avisara que não servia. Mas, os olhinhos da menina brilharam ao vê-lo. E era tão novinho ainda. Tem de ser meu, pensou ela. E vermelhinho, da mesma cor dos tomatinhos maduros e azedos que coloriam a ramagem espalhada na parte lateral do que restava da cerca de balaústra. Delimite do grande quintal.

               Quando chegavam novas mercadorias usadas, logo vinha o recado. Lá se ia a mãe. Buscava vestimentas que coubessem nos filhos. Tantos e com idades tão próximas.

               Era uma alegria quando algum dos sapatos dava certo nos pés de algum deles. Aquele vermelho estilo boneca e com fivelinhas, ficara muito apertado no pézinho dela e grande demais para a irmã mais nova. Não se conformou em deixá-lo. Foi paixão à primeira vista. Levou o sapato. E embora ficasse com os dedos encolhidos pelo aperto no bico, se fazia de forte. Usaria assim mesmo. Era lindo. E sentia-se feliz demais ao olhar para os próprios pés, que já não pareciam tão escurecidos pelo sol quente de todos os dias.

               O calor intenso causava muitos suores. Seus dedos doiam ainda mais. Não sabia quais, se os que estavam queimados na mão ou se os que estavam apertados no pé.

               Logo que dobrou a esquina e pegou a estrada que ia direto em direção ao cemitério bem no meio da grande subida, não resistiu. No barranco haviam grandes tousseiras de capim que se deitavam, quase que por sobre a estrada de chão. Marcou bem o lugar. Desceu a sacola com os alimentos. Colocou ao lado e retirou o calçado. Deixaria ali escondidos, os sapatinhos vermelhos. Andaria ainda uns mil e quinhentos metros, sendo que desses, mais ou menos quinhentos era à frente e os outros mil era virando à esquerda quase no rumo do portão de entrada do velho cemitério. Então seguiria reto pela estradinha, até chegar onde o pai trabalhava. Na volta pegaria, ou melhor resgataria, seu tão precioso bem. Os sapatinhos vermelhos.

               Alice pensava em todos os castelos que imaginava nos fundos da sua casa. O pé de Santa Bárbara, uma arvore enorme e cujos frutinhos eram umas bolotinhas amarelas, era o casarão. Seus galhos eram os cômodos. Vastos, arejados e com vistas para um imenso jardim que contemplava algumas árvores frutíferas. Uma mexeriqueira, cuja copa parecia uma saia, com grandes armações e de onde, estando embaixo, era possível se esconder do mundo.

               Com labuta, conseguiu levar para cima algumas tábuas e encaixá-las de forma que formassem corredores que iam de um galho até o outro. Era seguro, constatou ao atravessar. Nos galhos menores, fez camas perfeitas, onde simulava a noite e após a oração, primeira lembrança que tinha da mãe, fechava os olhos e brincava de sonhar.

               Mais abaixo, árvores menores, dispostas uma depois da outra. As casas de amigos. Subia e descia pelas escadarias imaginárias. Conversava sozinha quando o irmão não estava por perto.

               As meninas visinhas não entendiam quando ela fazia de boneca, os pequenos brotos das bananeiras enfileiradas antes do pequeno córrego que ficava mais ao fundo.  Brincavam.


         
O pai, sempre de olho, reclamava pelos frutos que não chegariam a vingar.  Eram cortados da planta e assim,  se punha  fim à vinda dos cachos de banana, que vez ou outra surpreendiam pelo perfume quando já estavam dourados e pingados de preto. No entanto, tudo era mágico. Nem a dor da queimadura afastava o encantamento com que brincava de viver.

               As folhas mais novas das bananeiras  se tornavam  roupas, as vestes mais finas. As de sair aos domingos. De ir à igreja. O problemas é que eram sempre amarelas. Então usava um galho seco e desenhava nas folhas macias. Fazia-lhes as estampas á mão. Ora floridas, ora de céu, ora de peixes. Ora de estrelas ou sóis e via tudo em cores. Lembrou que uma vez tentara contar as cores do arco-iris, mas, uma  sempre acabava  na outra e não sabia que eram chamadas nuances. Achava-as lindas, entretanto.

               Entregue a refeição, retornava a menina. Perdida em tantos pensamentos que não se dava conta de nada mais à sua volta. Tinha certeza porém que o lugar era aquele. Sim, havia marcado a moita diferente. Deixara um rama seca no lugar certo, bem à beira da estrada. Certamente alguém houvera passado e, empurrado para longe a rama. Ou mesmo o vento, talvez tivesse  confabulado contra.

               Como explicaria à mãe o acontecido?  Se perguntava. Como diria que estava apertando tanto seus pezinhos que decidira deixar os sapatinhos que amava à beira da estrada para quando voltasse? Ela não entenderia. Avisara, mais de uma vez que o sapato não era para o tamanho dos seus pés. Teimosia. Diria novamente.

               O sol continuava escaldante. Os dedos que haviam sido mergulhados na calda do pudim, doiam incessantemente. Os cabelos longos e finos grudavam no pescoço. O suor escorria pelas costas e barriga. Os pés pisavam na poeira macia e quente do meio dia. As lágrimas banhavam o rosto ainda infantil.

               Cada passo a aproximava da sua sentença. Ouviria a reclamação da mãe e ficaria quieta, pensava. E logo depois da bronca correria para seu mundo encantado onde era uma princesa. Ainda não pensava em príncipes.  E andaria por sobre os galhos deitados das árvores. Corredores que a levavam para recantos mágicos sempre que desejasse.

               Neles tudo era perfeito. E já nem a queimadura a incomodaria. Sofrimento teria ficado lá atrás, mesmo sem os sapatinhos vermelhos. Bastaria um passeio por seu mundo mágico e tudo se tornaria perfeito, como num sonho.

               Dor nenhuma seria maior que perdê-los. E não foi, nem mesmo quando a mãe disse ela merecia uma surra de cinto por ter sido irresponsável. Não apanhou, Doia, no entanto. Lembrou que se não os tivesse perdido, logo, os sapatos seriam da irmã mais nova.



               Ao longo de minha vida, nunca mais vi nada parecido. Não lembro de ter batido os olhos com tanto encantamenro em algo. Talvez tenha sido nesse episódio que aprendi a não vislumbrar demais e nem me decepcionar demais, forma de sofrer menos quando as coisas não são exatamente como esperado.

               Só sei que os lindos sapatinhos estilo boneca foram únicos em minha vida. De lá para cá, nunca mais, nada foi quanto aqueles, vermelhinhos, quando eu ainda tinha oito anos.


                                                                      
AndreaCristina Lopes
Enviado por AndreaCristina Lopes em 17/02/2012
Reeditado em 23/04/2013
Código do texto: T3505486
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