Vivendo e Escrevendo.

Sei que preciso escrever alguma coisa, senão não consigo dormir. Se parar de escrever morro. Estou condenado a ser um eterno escriba enquanto viver. Teclar, teclar, teclar; quando não teclando, escrevendo à mão; na parede, se falta papel; no chão, se falta parede; na areia, se falta terra, nas nuvens, se falta matéria, nas idéias, se restarem apenas os sonhos.

Tem que escrever, escrever sobre as duas diaristas que dialogam ampla e filosoficamente sobre a vida do ente, do próximo, do querido ou do maldito, do simplório ou do luxuoso, até que suas patroas gritam seus nomes em uníssono.

Tem que escrever sobre a vida do Sr. Genival, suas limitações e recordações de quando era um belo e jovem eletricista, como tinha preparo para diversificadas voltagens, sua notória experiência, até que um derrame o deixou fora de atuação, mas um dia volta, diz ele, mesmo que seja por um único e último dia, como o soldado que sonha em voltar para o campo de batalha a fim de resgatar algo seu deixado lá, uma perna, um braço, um dedo, talvez, ou quem sabe apenas para resgatar a própria dignidade perdida nas torturas e atrocidades da guerra, capaz de arrebentar não só com o corpo e a honra do cidadão, mas também quebra seu espírito e destrói sua personalidade. Um homem não participa duas vezes da mesma guerra, parafraseando a filosofia de Heráclito, em que não se nada duas vezes no mesmo rio, já que o rio muda e o sujeito mudam a cada milésimo de segundo; a vida é uma transformação ininterrupta de atos e fatos direcionados ao princípio e ao fim, num eterno retorno nietzschiano, o que parece absurdo é até alucinatório, mas que tem como mola propulsora a evolução, como principal e mais sagrada lei da vida.

Temos que ir, temos que seguir adiante, não podemos parar. A Ana tem que ganhar nenê, a Sebastiana tem que cobrar o aluguel atrasado, o Arnaldo tem que pagar o carnê do banco do povo, o César quer pedir a mão da Neusa em casamento, mas é tímido demais, e teme que um dia largue da Neusa por neura em pedi-la em casamento; o Péricles corre atrás de um rabo de saia, e vez ou outra apanha no bar; e assim a vida prossegue seus dias alternantes entre estações, lapsos de luz e sombras; o padeiro que chora porque é sozinho, e que perdeu a mulher e os dois filhos, de uma só vez, num acidente automobilístico, o filho que quer ver o pai, e o pai não quer vê-lo, o pai que quer ver o filho e o filho é pródigo, a filha que quer encontrar a mãe verdadeira, a criança que chora sozinha porque a mão verdadeira não quis lhe comprar aquela rosquinha que tanto gosta, e que sonhou na madrugada, e o estômago até contorce de dor, e uma ânsia de vômito brota do íntimo.

Os passos na rua, serão daquela senhora que passa cumprimentando a todos, mas que carrega uma tristeza no olhar que faz todos desconfiarem mas sem coragem de perguntar. O que tanto faz a Neosina se entristecer?

Ao fundo um cão late desvairadamente, e um senhor aposentado decide fazer um bico e monta uma carroça de passeio para crianças, mas o som que toca é Teodoro e Sampaio e Gino e Geno, ai fico pensando que esse velho ou é louco da cabeça ou doente por mulher, e penso também que de forma alguma deixaria um filho meu andar naquela carroça puxada por um burro magro e renitente, fedido pacas, conduzida por um velho louco que ouve Gino e Geno e Teodoro e Sampaio. Jamais!

Enquanto isso o cão continua a ladrar... E a ambulância passa, carregando sabe-se lá quem em sua maca, alguém muito mal ou outro bêbado que desmaiou na calçada, e passam também uma motocicleta, um scort xr3 vermelho, ano 86, teto solar, ar-condicionado e vidros elétricos, top de linha na época em que curtia-se a vida adoidado, ouvindo Ira!, Titãs, Engenheiros, Legião e Ultrage a Rigos, época daquelas, em que se enchia a cara com Malte 90 nos bares de mesas e cadeiras de latas, onde as brigas quebravam mais que costelas e cabeças piradas, quebravam o dono do estabelecimento, que tinha que arcar com tudo no final, e ainda por cima varrer e limpar os cacos e restos de briga.

Aí um pouco da vida...

SAvok OnAitsirk, 23.02.12

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 23/02/2012
Reeditado em 26/02/2012
Código do texto: T3514816
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