DIÁRIO DE UM PSICOPATA

I

Quando ele se mudou para República da Universidade Federal da Paraíba, jamais seria capaz de imaginar os fatos estranhos e bizarros que se desenrolariam ao longo daquele ano. Vindo do interior da Paraíba, Otto esperava que conseguisse finalmente completar algum projeto na sua vida. O curso de Biblioteconomia não era lá essas maravilhas, mas ele esperava ao menos se formar para, quem sabe fazer um concurso no futuro ou, na pior das hipóteses, ter uma cela especial se por acaso fosse preso.

Afastou logo esses pensamentos da cabeça quando adentrou os portões da República. Os personagens que ele viria a conhecer fariam parte da sua vida, mesmo a contragosto, para sempre. Josenildo era o mais escroto de todos e quando Otto entrou no quarto ele já se encontrava lá, deitado no beliche, olhando para o estrado da cama com uma cara de indisfarçável tédio.

-Eita, tem carne nova no pedaço! - Foi logo falando assim que avistou o Otto.

-Bom dia! Tudo bem?

-Pô, meu irmão, pode deixar de formalidades. Aqui não tem essas frescuras não. E aí como é que tu tá?

-É.. Eu tô bem.

Otto colocou a mala em cima do beliche e olhou a sua volta. Uma bagunça generalizada. Roupas espalhadas pelas camas, livros em tudo quanto é lugar e uma pilha de pratos em cima da pia. Coisa de estudante desocupado mesmo, foi o que Otto pensou.

Não demorou muito pra conhecer as outras figuras com quem seria obrigado a coexistir. Leonildo, Álvaro e Gasparetto. Três personalidades distintas. Leonildo extrovertido demais, Álvaro calado demais e Gasparetto atrapalhado demais. Eles entraram, acenaram com a cabeça para Otto e arrastaram Josenildo para algum lugar.

Otto ficou mais uma vez sozinho como de costume. Começou a sentir-se mais a vontade. Pelo que tudo indica, eles iam beber.

Desarrumou as malas e ficou ali, jogado na cama. Sem pensar em nada. De repente, não se sabe bem porque, sentiu-se atraído por uma cômoda que parecia contrastar ridiculamente com todos os móveis daquele recinto. Ela era pintada de vermelho, tinha uns desenhos sinistros em volta e até mesmo suásticas. "Coisas de universitários" - pensou mais uma vez.

Levantou-se e abriu a gaveta de cima, que apesar de ter um cadeado, encontrava-se aberta. Nela se encontrava o que parecia ser uma agenda pesadíssima, muito volumosa e cheia de poeira. Capa preta e grossa. Ele tirou-a dali, deu várias pancadas para limpar o excesso de poeira e abriu. Era um diário. Estava muito surrado e aparentava ser muito antigo.

II

"Meu nome é Gabriel e tenho 28 anos de idade. Depois de incontáveis tentativas frustradas, e de muito tempo desperdiçado fazendo uma série de coisas inúteis, resolvi relatar aqui, não sei bem com que intuito ou para quem, tudo que me ocorreu e ainda ocorre, durante esses meus poucos anos de vida. Talvez numa tentativa de entender isso tudo ou de deixar algum documento escrito para posteridade, algo que possa ser estudado no futuro por pessoas interessadas em entenderem a mente humana, até porque cada vivência é única e deveria, a seu modo, ser registrada."

Depois dessa introdução Otto deu uma pausa e foi pegar um copo de água. Ficou imaginando quem teria escrito tal diário e porque ele ainda continuava ali, sujo e empoeirado, guardado naquela sinistra cômoda pra quem quisesse ler. Reiniciou a leitura imediatamente, ávido por conhecer mais um pouco daquele estranho personagem.

"Tudo começou quando eu tinha, aproximadamente, uns onze ou doze anos de idade. Meus pais foram à feira e trouxeram uns pintinhos que teimavam em criar no quintal lá de casa. Eles saíram certa vez e eu gostava muito de brincar com aquelas criaturazinhas, tão pequenas e indefesas. Foi quando me passou uma idéia doentia pela cabeça. E não demorei muito a executá-la.

Peguei um daqueles pintinhos, levantei a certa altura do chão e deixei que ele caísse, como que por um acidente. Ele se esborrachou no chão e pude ver que embaixo das suas asas sangrava e não foi sem um grande prazer que desferi um pisão naquele bicho. Quando levantei os pés lá estava ele. Ainda se mexia, mas estava todo ensangüentado e com as duas patas quebradas. Terminei a execução rapidamente e me contorci de prazer e satisfação ao ver a minha obra.

Acredito que tudo tenha começado exatamente ali. Depois foram os gatos. Os malditos gatos. Nunca gostei desses bichos mesmo. Tinham muito pelo, causavam alergias. Furei seus olhos, esmaguei suas cabecinhas. Foram muitas as formas de tortura. Cada uma me proporcionava um determinado grau de prazer..."

Otto começou a entender o que se passava. "Filho da puta", pensou. "É muito fácil matar criaturas indefesas e dizer que é maluco. Eu quero ver você fazer isso com alguém do seu tamanho. Eu quero ver só, seu sacana".

Otto era um cara bastante reservado. Embora fosse neutro em relação a assuntos da natureza e campanhas a favor do vegetarianismo e etc. ele odiava a covardia e a crueldade humanas. Teve repúdio imediato pelas atitudes do seu mais novo conhecido. "Como era mesmo o nome dele? Ah, Gabriel. Tinha nome de anjo o desgraçado. Mas agia como um demônio". Apesar de todo asco não conseguia parar de ler.

"Não demorou muito para que eu passasse a me interessar por uma coisa maior. Queria sentir o prazer supremo. Ver a morte de perto. Sentir o poder que emana das mãos daquele que tira a vida de um ser humano. Jurei pra mim mesmo que não morreria sem realizar o meu intento."

-Bora bando de fela da puta!!! Vamos cozinhar que eu tô morrendo de fome! E você ai, novato! Não fique com essa sua bunda ai parada nessa cama não! Trate de vir aqui também e ajudar em alguma coisa!

Era o som estridente e irritante dos colegas de República de Otto. Estavam todos bêbados e ainda por cima cheios de liberdades e exigências pra cima do seu mais novo companheiro. Mas em todos os lugares existiam regras que tinham que ser seguidas. Ali também não seria diferente. Otto guardou o diário no seu lugar de origem e se levantou carrancudo da cama. Eram três horas da tarde.

III

Depois de lavar os pratos Otto ligou a TV para assistir um pouco do Telejornal. Uma chatice. Embora fosse necessário e importante para não se manter alienado e a par dos acontecimentos do mundo, ele nunca conseguia se concentrar e prestar a devida atenção naquela enxurrada de notícias repetitivas e superficiais jogadas na sua cara. Desligou e logo em seguida voltou pro diário.

" O primeiro assassinato. A primeira transa. O primeiro beijo. O primeiro orgasmo. Compare com o que quiser, mas talvez só assim você consiga ter uma idéia aproximada do que eu senti naquele dia. O suor no meu rosto. A adrenalina e a euforia dominando minhas ações. E como todas as primeiras experiências da nossa vida, são avassaladoras, violentas, arrebatadoras, mas ainda não trazem em si o grau de satisfação completo e sereno que só o amadurecimento e conhecimento das coisas podem trazer. Comecei obviamente por um desafeto. Não gostava dele mesmo. Pra mim não fazia a menor diferença se ele existia ou não. Aproximei-me daquele imbecil fingindo ser seu amigo. Nunca fui muito ligado à família, portanto foi muito fácil livrar-me daquele primo ridículo que há muito desprezava. Atraí-o para um lugar ermo. Uma mata afastada do sítio onde passávamos as férias do colégio. Ele foi até a beira do açude molhar o rosto. Tirei o machado que havia escondido atrás da moita. Quando teve a intenção de virar-se para averiguar a razão do meu silêncio, desferi um golpe mortal na sua cabeça. A lâmina do machado entrou fundo no seu crânio partindo sua cabeça ao meio. O barulho do crânio se partindo. O sangue jorrando. A minha iniciação no mundo dos prazeres proibidos..."

"Maldito doente! Esse cara só pode ser um imbecil! Um retardado! Um demente desgraçado!"

-Ei, meu irmão? O que é que cê tá lendo ai? -Disse Josenildo, arrancando o diário violentamente das mãos de Otto.

-Meu irmão! Lê essa porra, não! Isso vai fundir o teu cérebro, cumpadi! Escuta o que eu tô te dizendo! Desde que a gente chegou aqui, esse troço tá na gaveta trancado. Algum imbecil abriu, não foi Gasparetto? E se esqueceu de fechar! Não vai pensando que isso é verdade, não! Deve ter sido a tese de algum estudante doente, da universidade. Agora te levanta e vamo comigo no supermercado que a festa já vai começar.

IV

21h:30min da noite. Red Hot Chilli Peppers no maior volume. Bebida a vontade. Vodka, latinhas de cerveja, uísque e cana. Bagulho do bom também. Cocaína pra quem quisesse cheirar. Só não tinha heroína. E não precisava também.

Otto já tinha tomado todas depois que voltou do supermercado com Josenildo e agora conversava com um monte de caras que nunca viu na sua vida e que provavelmente seriam os seus colegas de classe da universidade.

A festa era no apartamento do Levi. Um cara boa pinta e simpático. O tipo de pessoa que faria amizade até com uma planta se soubesse que ela significava algum tipo de status na universidade. Josenildo estava tragando um cigarro enorme de maconha. Gasparetto no canto olhava pro teto entediado e alheio a tudo. O Álvaro estava quase trepando com uma menina na varanda. O som agora parecia ser a trilha sonora de algum filme dos anos oitenta.

Foi quando ela entrou. Um colírio para todos os olhos. Uma visão no meio do inferno universitário. Uma mulher de 21 anos aproximadamente, mas que aparentava bem menos. Tinha uma carinha de anjo. Embora agisse como uma diaba. Chegou logo tragando um cigarro e pegando uma latinha na geladeira. Deu pouca atenção ao pessoal que estava ali. Pelo visto só queria se chapar e esquecer que estava naquele lugar. Otto se aproximou logo dela tentando puxar assunto. Só bêbado pra ele ter coragem de fazer uma coisa dessas.

-Oi. Você mora aonde?

-Aqui perto da Universidade mesmo. E daí?

-Nada. Só queria saber. É que fiquei doido pra te conhecer - Otto já estava com aquela voz arrastada. Daí a pouco começariam as cantadas baratas e seria um saco ter que suportar as suas investidas de galã de botequim.

-Eu moro na República. Você conhece? Sabe onde fica? -Ele perguntou na falta de um assunto melhor.

-Claro. Já namorei um dos caras de lá.

-Foi mesmo? Quem?

-O Josenildo.

Agora tudo fazia sentido. Estava explicado o visível mal-estar em que Josenildo se encontrava. A presença da sua ex de alguma maneira o incomodava.

-Você já ouviu falar das mortes?-Pela primeira vez em vários dias Otto voltou a se sentir como um ser humano. Ela havia lhe dirigido uma palavra.

-Que mortes? Eu não sei de nada.

-As mortes no Campus. Já morreram uns três. Fora animais e todo tipo de coisas estranhas que estão acontecendo por lá. Tem um monte de área interditada. E o Governo já está considerando a possibilidade de interditar a universidade, caso alguma coisa não seja feita logo para solucionar os crimes.

-Eu não sabia. Puta merda! Curioso... Eu sei que não tem nada a ver, mas... Não, deixa pra lá.

-Não, que é isso! Fale. Pode ser interessante. Você sabe de alguma coisa a respeito dos crimes?

-Não, acho que não. Acho que não tem nada a ver com isso. é só um diário que eu encontrei numa cômoda da República. E fala sobre um psicopata. Ele relata uma série de atos hediondos e tal...

-Você pode me mostrar? Fiquei muito interessada.

-Claro! Assim que conseguir a chave te mostro, tá bom? Dá licença que eu vou pegar mais umas latinhas. Ah, já ia esquecendo, seu nome?

-Cristiane.

-Ah, tudo certo então. O meu é Otto.

V

Otto não sabe como isso pode ter acontecido. Mas o que lhe contaram é que uma garota foi esfaqueada, quer dizer cortaram a garganta dela e depois a esquartejaram, e ainda transaram com ela depois de morta. Tudo isso ali, naquela festa.

Como ninguém impediu ou chamou a polícia ele não sabe explicar. Ao que tudo indica ela só foi acionada quando a garota já estava morta. E o criminoso obviamente já havia se evadido do local. Todos deram depoimentos na delegacia. Mas ninguém foi detido por pura falta de provas.

A semana transcorreu normalmente. Primeiro dia de aula e também da ressaca. Otto finalmente conheceu o corpo docente ou indecente daquela instituição. O que mais lhe chamou a atenção foi um professor de história da arte. Com apenas uma parte do bigode aquele professor era tudo que havia de mais estranho naquele lugar.

Iniciou lendo um texto de Edgar Allan Poe e com as mãos trêmulas de entusiasmo incitava os estudantes a questionarem os valores vigentes, inclusive os religiosos. O professor Omar era um verdadeiro estudioso de História e filosofia. E tinha certa rivalidade com o Professor de filosofia. Ambos competiam em estranheza e conhecimento.

Resolveu repentinamente opinar a respeito dos crimes. Disse que eram perfeitamente comuns em sociedades mais primitivas algumas formas de violência e perversões. Na nossa sociedade o que são considerados crimes, nelas é perfeitamente aceito ou punido com a mesma moeda e isso seria bem mais aceitável e digno que a prisão moderna. Otto percebeu certa animosidade por parte dos seus colegas frente os discursos acalorados do seu professor. Era seu terceiro dia naquela cidade.

VI

Meia-noite e meia. Otto acordou assustado coberto de suor do que parecia ter sido um pesadelo horripilante. Reparou nas outras beliches. Estavam vazias. As janelas abriam e fechavam ao sabor do vento. A porta estava entreaberta. Levantou-se imediatamente. Colocou uma roupa e se dispôs a sair para ver o que tinha acontecido. Pegou uma lanterna em cima da mesa. Aquela área realmente parecia muito assustadora à noite e principalmente estando-se só precisava ter muito culhão para caminhar por ali. Havia a República e em volta apenas mato. Devo salientar que a República não fica nem um pouco próxima da Universidade, mas pelo contrário era necessário caminhar alguns quilômetros para chegar naquele local. Otto continuou a sua peregrinação. Sentia um pouco de medo, mas se achava impelido por uma curiosidade maior ainda.

Perto dali observou que havia uma espécie de capela. Um lugar pequeno, mas que devia abrigar certa quantidade de fiéis. Quando se aproximou do local começou a ouvir vozes abafadas. Parecia que estava acontecendo alguma espécie de reunião religiosa aquela horas da madrugada. Entrou na capela procurando não fazer barulho. Percebeu que estava extremamente escura, mal iluminada por algumas velas. Ficou atrás de uma porta. Ouvia passos. E conseguia escutar algumas palavras:

-"Amigos e Irmãos! Gostaria de dizer-lhes mais algumas palavras a respeito. Não temam às ameaças e as amarras da sociedade padrão! Sigam apenas os seus instintos e vocês não serão decepcionados! Assim como o irmão Gabriel, que foi até o fim nos seus desígnios e levou ao mais alto grau a realização dos seus desejos mais primitivos, assim nós também devemos seguir o seu exemplo, e partir em direção ao novo alvorecer onde seremos conhecidos como sempre fomos! Homens segundo a sua natureza. Agindo conforme o nosso instinto e sendo guiados pelo prazer. Não importando o preço que tenhamos que pagar por isso!"

-"É isso mesmo!!!" -gritavam aos brados.

Otto logo conseguiu reconhecer aquela voz. Era a voz de Álvaro. E ao que parecia a sala estava lotada. E as pessoas ali reunidas não podiam ser outras senão os estudantes universitários da República e outras pessoas da vizinhança.

-"Obrigado, Álvaro. Agora continuemos, irmãos! O grande momento agora se aproxima. O momento de pormos em pratica tudo que aprendemos. E tudo que realmente somos. Brindemos a esta noite. Mas acima de tudo, vamos comer! Vamos nos alimentar do sopro, da carne, e do sangue que nos dá a vida!"

Foi igualmente fácil reconhecer essa voz. Omar, professor de História da Arte. Chamavam-no Mestre de Cerimônias. Nesse momento Otto inclinou um pouco a porta de entrada e conseguiu vislumbrar um pouco daquele cenário caótico.

Em volta de uma enorme mesa, várias pessoas nuas se alimentavam de partes de cadáveres, vísceras, mãos, pés, pernas e olhos eram devorados com toda avidez e o sangue jorrava pela boca daquelas criaturas. O mestre de cerimônias também se fartava de uma suculenta porção de carne humana. Otto estava prestes a vomitar quando ouviu o brado de um dos participantes.

-"Mestre! Venho pedir a sua atenção para um assunto muito importante. Algo que fiz esta tarde e não tem mais volta. O senhor me falou que era válido fazer o que tivéssimos vontade que essa era a lei suprema que guiaria os nossos instintos e nossas ações."

-"Sim, meu filho! Fale!"

-"É que eu trouxe para o poço das torturas uma moça que já faz algum tempo inferniza a minha vida. Queria muito que ela fosse minha. Mas como ela não quer, Eu decidi torturá-la até a morte. E dar-lhes o prazer supremo de compartilhar da minha satisfação!"

-"Tragam-na aqui! Agora! Vamos iniciar a sessão!"

Otto reparou horrorizado que era Josenildo quem tinha acabado de falar e não foi sem muita surpresa que reparou que a infeliz menina que traziam para a cadeira de torturas era Cristiane! Ele virou-se de costas para a porta e fechou os olhos. Não suportaria ver aquela linda garota que ele havia conhecido na festa sendo submetida à tamanha crueldade. Mas não sabia o que fazer para ajudá-la.

Pelo visto aquilo era uma sociedade. Uma maldita sociedade de canibais que tinha como mestre de cerimônias o professor de historia da arte. Eles deviam se reunir periodicamente naquela capela. E tinham um lugar secreto onde escondiam as vítimas dos assassinatos para serem devoradas nas reuniões. Tudo feito às escondidas. E com o apoio de pessoas da mais alta sociedade. Não é a toa que a policia nunca tinha chegado perto. Ou não queria. Aconteça o que acontecer Otto tinha que agir rápido, pois dentro de alguns segundos Cristiane seria executada e mesmo que a policia intervisse nada poderia ser feito para trazê-la de volta.

VII

Uma pancada forte e um baque surdo. Era só o que ele conseguia lembrar. E depois a escuridão. Os seus pés se arrastando pelo chão áspero. Um assento sob a suas nádegas. Laços nos seus braços e pernas. Abriu os olhos. Aquela capela parecia ser bem maior de dentro do que de fora. Cristiane estava ao seu lado. Linda como sempre. Uma tapa no rosto.

-"Otto, seu filho da puta! Já há alguns anos viemos operando por essas bandas. E quando a gente acha que está tudo certo, aparece um imbecil do interior da cidade disposto a atrapalhar os nossos planos! O que você tem a dizer sobre isso, hein? O que você tem a dizer sobre isso seu desgraçado filho de uma égua?"

Mais uma porrada no rosto, Desta vez saiu sangue.

"-Nada! Me libertem! Pelo amor de Deus, libertem a mim e a Cristiane que a gente jura que fica de bico fechado! Se a polícia quiser que descubram vocês por conta própria!!"

"-A polícia? Foi isso que você falou? Tem alguém querendo entregar a gente pra policia aqui pessoal? Tem gente de todas as classes sociais aqui, seu idiota. E de vários grupos. Pessoas que serviram o exercito. Pessoas do Governo. Nós prestamos um serviço inestimável a sociedade. Retomamos o que ela roubou em anos de sociedade hipócrita e domesticadora. Nós devolvemos o homem à sua verdadeira natureza! O homem pode voltar a ser ele mesmo através do canibalismo e não precisa se envergonhar dos seus instintos mais obscuros!"

-"Doente! Você é um maldito doente, Omar! Eu espero que você seja preso e queime no inferno seu desgraçado!"

Foi a última sentença que Otto conseguiu proferir. Dois homens musculosos vieram ao seu encontro. Um forçou-o a abrir a boca, enquanto o outro lhe empurrou um comprimido. Fizeram a mesma coisa com Cristiane.

A partir daí teve início a sessão de torturas. Josenildo na frente apreciando o seu espetáculo. Trouxeram dois espetos em brasas vivas e colocaram perto dos olhos de Otto. Ele já lacrimejava e gritava implorando que eles parassem. Foi quando eles afastaram o espeto e ficaram todos de braços cruzados encarando os dois. Otto Começou a examinar os rostos que estavam ali. Todos da República. E mais uns universitários e alguns desconhecidos.

De repente aquela sala começou a adquirir um aspecto ainda mais sinistro e monstruoso. Os rostos daquelas pessoas ficaram ainda mais terríveis e impiedosos. Todos tinham presas de vampiros e seus olhos estavam rajados de vermelho. O mestre de cerimônias era o mais sinistro de todos. Suas unhas cresceram demasiadamente e seu corpo ficou cheio de farpas e totalmente manchado de sangue. Quando abriu a boca uma presa enorme de lobo ficou à mostra e chamas saltaram para fora como um terrível maçarico. E ele começou a proferir as seguintes palavras:

"-Eu sou o iluminado! Aquele que veio ao mundo para abrir as mentes daqueles que não enxergam! Vim para trazer-lhes a luz! Desde o início predestinado, fui acolhido no seio materno. Tenho uma missão a cumprir na terra, me chamo Gabriel!"

Quando ouviu essas palavras Otto estremeceu de medo! Então era Omar o maldito doente que escreveu aquele diário e criou essa seita absurda totalmente fundada nos seus delírios e alucinações de psicopata! Foi o que bastou para que ele resolvesse agir e tentar escapar numa última tentativa desesperada das garras deles. Olhou para o Gasparetto. O mais calado da turma. E talvez, por isso mesmo, o mais sábio. Lembrou que era o que sempre se mantinha neutro nas conversas e o que mais mostrava desdém nas brincadeiras sádicas dos demais membros da república na classe.

-" Gasparetto! Apelo para o seu bom senso! Veja que absurdo este canalha está cometendo! Usando todos vocês como cúmplices desses crimes absurdos! Mas ainda há tempo para escapar e mudar de opinião! Ajude-nos a sair dessa e até na polícia você terá a sua pena aliviada por nos ajudar a escapar desse louco!"

Ele pareceu pensativo por um instante e Otto chegou até a pensar que o tinha demovido dos seus intentos malignos e o feito voltar a si. Mas logo ele voltou a ter um semblante assustador.

-" Morte, mestre! O caldeirão de água pegando fogo! Me permita torturar este maldito por causa dessas suas palavras de atrevimento e ousadia contra o senhor!"

"-Faça segundo a sua vontade, meu filho! Fazes o que tu queres, há de ser tudo da lei!!!"

Depois dessas palavras "roubadas" de Aleister Crowley pelo mestre Omar, Gasparetto foi em busca do tal caldeirão e com a ajuda de outro companheiro trouxe ele até a frente da sala e dispô-se a atirar o seu conteúdo efervescente, em cima de Otto.

Omar deu as costas para o caldeirão e começou a entoar um cântico num dialeto desconhecido. Otto desesperou-se completamente. Nunca imaginou a sua morte e ainda mais de maneira tão dolorosa e trágica.

Gasparetto piscou um olho para Otto e num átimo de segundo virou-se e derramou o conteúdo do caldeirão em cima do Gabriel. O miserável gemeu como um porco. Gasparetto não perdeu tempo e desatou os laços de Otto e Cristiane.

As pessoas se desesperaram e saíram correndo dali. Os que tentaram reagir foram logo surpreendidos pela 38 que o Gasparetto carregava. Ele só precisou dar um tiro pra cima. Otto Pegou a Cristiane e saiu daquele lugar.

Dali diretamente para a casa do reitor. Ele não poderia deixar que aquele maldito, mesmo queimado, ficasse impune dos seus crimes. Falou com Gasparetto que precisava conversar imediatamente com o reitor da universidade e ele além de lhe dar o telefone e endereço do mesmo insistiu pra ficar tomando conta da Cristiane. Otto não podia perder um minuto sequer.

VIII

Para sua surpresa o reitor apesar de ter se acordado um pouco desorientado e ter pedido pra ele se acalmar antes de começar a falar, fez questão não apenas de recebê-lo na sua casa, como também de buscá-lo pessoalmente. Por certo ficou completamente chocado com a história que ele acabara de contar e além de ser de sua responsabilidade a universidade e tudo que lhe dizia respeito, com certeza também queria ganhar todos os créditos pela elucidação dos crimes.

Em questão de minutos estava na sala da casa do reitor. Um verdadeiro palacete, tomando café quente e tentando tomar fôlego para começar o seu relato. Contou tudo que lhe veio à mente. Disse que a policia devia ser imediatamente acionada e que não deveriam perder tempo, pois Cristiane corria risco de morte no meio de todos aqueles fanáticos participantes daquela seita.

O reitor escutou a tudo tentando manter a compostura. Pediu o telefone e fez a ligação para a policia. Disse tudo como Otto lhe contara e disse que provavelmente o Omar estivesse morto na capela ou morreria em breve se não recebesse os devidos cuidados e o pior de tudo, morreria impune por seus crimes. Assim que terminou a ligação, pediu que Otto se deitasse. Deu-lhe um comprimido pra dor de cabeça. Colocou-o no quarto de hospedes. Otto apagou completamente.

IX

Um estrondo absurdo e violento abre a porta. Otto acorda sobressaltado.

-Ele está logo ali pessoal. Por favor, tenham todo cuidado com ele!

Parecia a voz do reitor. Uns quatro homens corpulentos e com roupas brancas o levantaram da cama. Um deles trazia uma camisa de força. Otto entendeu tudo repentinamente com a clareza de um dia de verão.

-Não façam isso! Eu não estou maluco! Tudo que eu contei é verdade, seu reitor. Aquele maldito do Gabriel armou isso tudo! Tem um diário na cômoda da república que confirma isso que eu falei. Me levem até lá que eu mostro tudo isso a vocês. Ele fundou a seita! E matou todas aquelas pessoas!

O enfermeiro agiu rapidamente colocando a camisa de força com a ajuda dos outros. Arrastaram Otto até a sala.

-Eu jamais imaginei que ele fosse capaz de tal coisa seu reitor! Ele parecia tão aplicado. Nunca me causou qualquer tipo de problema. Mas andava bebendo e se drogando demais. A gente faz coisas horrendas e sem sentido quando está sob o efeito de algumas substâncias.

Era a voz do maldito Omar. Ou Gabriel. O desgraçado estava sentado na sala com uma xícara de café na mão. Tão bom e inteiro como da última vez que ele o viu. Como escapara daquela panela de água fervendo?

-Esses garotos são assim mesmo, reitor. Eles passam por essa fase do fascínio das drogas e alguns, como parece ser o caso do Otto, não conseguem lidar com isso de uma maneira satisfatória, ai dá no que deu. Quando esse garoto chegou à capela nos estávamos todos lá, como de costume. O senhor sabe melhor que ninguém que nos reunimos periodicamente naquele local para desfrutar os prazeres da literatura, que o nosso clube do livro está cada vez mais prolífico e que em breve estaremos publicando mais um livro fruto de nossos esforços reiterados no intuito de despertar o gosto e o prazer pela leitura nos nossos esforçados e promissores alunos. Então, como eu dizia, estávamos todos ali, em plena leitura, quando este aluno invadiu a capela, completamente fora de si, dizendo que devíamos parar o que estávamos fazendo e etc. Por coincidência, estudávamos uma obra de Edgar Allan Poe que discorria acerca do canibalismo. Resumindo, seu reitor, depois de muita luta conseguimos contê-lo e o colocamos sentado numa cadeira alguns instantes ao lado de outra aluna que dizia ser sua amiga e que tentou acalmá-lo. Quando tudo parecia resolvido e finalmente ele parecia ter recobrado o juízo, de repente, correu na direção do bebedor da capela, ergueu o garrafão de água mineral e veio em minha direção, completamente ensandecido. Um dos meus alunos foi prontamente em cima dele na intenção de contê-lo e, na luta, terminou por derramar um grande conteúdo de água em cima de mim. Havia um vigilante no local e tratou logo de dar um tiro pra cima na tentativa de acalmar os animos de Otto. Ele saiu correndo. Fui atrás dele na intenção de ajudá-lo, mas qual não foi a minha surpresa ao ver na entrada da capela, deitada de bruços, com a garganta cortada e completamente ensangüentada, Cristiane. Logo em seguida encontraram o Gasparetto morto em cirscuntâcias semelhantes. É o que eu falei, reitor. O LSD e outras drogas tem as suas propriedades positivas, mas em mentes fracas e influenciáveis possuem um efeito contrário e adverso que faz com que suas qualidades psicotrópicas sejam anuladas.

Otto queria matá-lo! Assassiná-lo! Fazer qualquer coisa para não ouvir aquelas palavras mentirosas. Lembrou que o haviam drogado na sala da capela. E ainda por cima haviam matado Cristiane e Gasparetto. Crápulas nojentos. Um dia pagariam por seus crimes, esses desgraçados! E foi com grande esforço que foi contido pelos enfermeiros que aplicaram uma injeção e o arrancaram dali para a ambulância e foram direto pra o manicômio judiciário.

-É Omar! E pensar que eu ainda tive que ligar para a polícia para satisfazer os delírios paranóicos desse louco. Ainda bem que a polícia de nossa cidade assim como o senhor e eu tem os seus olhos, mentes e ouvidos abertos para a verdade e não se deixam levar por qualquer idiotice.

E deram um aperto de mão e se abraçaram. O reitor segredou-lhe alguma coisa no ouvido.

X

Mais um ano letivo. Muitos jovens adentram a universidade todos os anos com o intuito de realizar algum sonho ou para melhorar as exigências do mercado de trabalho. Ou até para atender as expectativas da família. São privilegiados na verdade. Na Universidade Federal da Paraíba nunca foi fácil entrar, como em qualquer outra universidade. Ensino gratuito com qualidade é uma coisa cada vez mais rara.

Foi com muitos desses sonhos e anseios que Catarina entrou nos portões da universidade naquele ano. Dirigiu-se logo a República onde iria residir com outras companheiras. Falou com duas meninas que estavam sentadas conversando. Deu boa tarde para outra que estava deitada no beliche. Viu a bagunça. Os pratos se avolumando na pia.

Mas o que mais lhe chamou a atenção foi aquela cômoda. Cheia de desenhos sinistros e com a gaveta de cima entreaberta. Parecia ser envolvida por uma mão invisível que lhe fazia um convite para abri-la. Ela não resistiu por muito tempo. Assim que colocou a mala na cama de cima, puxou a gaveta pra fora. Dentro, uma volumosa agenda. Capa preta e grossa. Quando abriu viu que se tratava de um diário. Haja paciência pra escrever um diário com tantas páginas e ainda mais pra ler. Jogou de volta lá dentro e deixou pra ver outra hora. Lembrou que tinha que se apressar. O seu irmão estava na cidade. Já fazia mais de dois anos que ele havia se mudado para João Pessoa. E não havia recebido uma visita de um familiar sequer. O que fez Catarina pensar: Quão grande não seria a reação do seu irmão Otto ao saber que a sua irmã mais nova estava na cidade, morando na república e matriculada na Universidade Federal da Paraíba?

FIM