XADREZ

XADREZ
Por Walter de Queiroz Guerreiro
Tudo se devera a Ibn Said Al Maqqari,que exaltara suas qualidades junto ao Sultão de Sûs. Desde o encontro afortunado em Seguriel El Hamra muito tempo se passara e os dois tinham jogado muitas partidas de shatranj¹ ou scacchi, como cada um chamava o jogo; haviam se conhecido melhor e respeitavam-se mutuamente. Na verdade eram pessoas iguais de países diversos, o nome da fé era diferente, mas os interesses eram os mesmos, o objetivo da vida igual, e o respeito pelo adversário uma ideia comum a ambos. Desta forma, quando haviam chegado a Sûs, Ibn Said pedira proteção e um salvo-conduto para que Guido pudesse viajar pelas terras do Islã, e enaltecera as qualidades daquele infiel que traria riquezas e expandiria o comércio através da Sagrada Porta. Uma das virtudes que agradara ao sultão fora a habilidade no tabuleiro de shatranj, e ele transmitira isso ao Sultão de Maghreb, que por sua vez fizera chegar aos ouvidos de Al Malik as Salih, Sultão de Damasco, o homem mais poderoso do império mameluco.
Estavam agora em Damasco, a cidade dos infinitos pilares, a pérola do Oriente e o portão de Meca. Ali era o assento do Sultão, filho de Qalaun Al Malik al Mansur, que por sua vez sucedera a Baibars 1º, o conquistador de Acre e o esteio do império mameluco. Temido pelos cristãos, e reverenciado pelos muçulmanos, encarnava a fé e o respeito aos cinco Pilares do Corão. Esse home poderia, com uma palavra, abrir-lhe o caminho até as terras do Preste João, ou num gesto, encerrar sua vida numa masmorra. Havia uma particularidade, entretanto, que os cristãos obcecados esqueciam: os mamelucos desde Baibars tinham expandido a cultura, preservado a arte e incentivado o comércio. A mola do mundo era o comércio e a tradição árabe corria no sangue dos mamelucos, era o caminho que abria as portas das fortalezas e das cidadelas dos infiéis.
Dessa forma, quando chegara ao palácio do Sultão de Damasco, com a escolta e o salvo-conduto do Reino de Maghreb, Al Malik as Salih já sabia que este homem era um bom comerciante e um grande jogador de shatranj. O sultão considerava-se um exímio jogador e lhe propusera uma partida digna de um potentado, e sinal de respeito a seus dotes de jogador. Seria perfeito se não houvesse uma imposição, apresentada como um desafio: se ele ganhasse teria uma escolta e poderia levar as mercadorias que quisesse, produzidas no império, para onde bem lhe aprouvesse; se perdesse teria que se converter `a fé do Islã, e ele e todos os seus homens seriam escravos do sultão.
Pensava: - assim gira a roda da fortuna, o bem que Ibn Said lhe fizera poderia se tornar a desgraça para si mesmo e seus homens, caso perdesse. O que aconteceria se ganhasse? Teria o sultão a magnanimidade de lhe conceder a vitória, ou não suportaria a derrota, e sob qualquer pretexto o mataria?
Foi despertado dos pensamentos pelo criado, que o conduziu através dos corredores do palácio à sala de vestimentas. Ali encontrou os homens que escolhera para a partida: Andrea, Winifred, Othon, Johannes, Balthazar e os outros que completariam as dezesseis peças. Eles seriam as vermelhas: botas de marroquim, calças e turbantes com plumas vermelhas, e um jaleco branco. O Sultão ficaria com as brancas, do turbante às babuchas, como ele costumava se vestir. Atravessaram os arcos do pátio e chegaram à grande praça da cidadela, junto à mesquita de Al Aqsa.
O chão tinha sido preparado para o jogo, coberto de seixos brancos e dividido em sessenta e quatro casas, através de linhas formadas por seixos negros, cada casa com quatro passos de largura. Caminhou para o palanque e sentou-se ao lado do sultão, cada qual tendo ao lado um ajudante e atrás os nobres mamelucos que assistiriam à partida.
Al Malik as Salih, todo vestido de branco, o caftã longo de lã, o turbante preso por uma enorme opala, com uma vestimenta que simbolizava o desprezo pela ostentação das sedas e do luxo, contrários ao Corão, anunciou a abertura: peão na casa quatro do rei. O ajudante transmitiu aos homens no tabuleiro e Guido viu o árabe a pé, com uma lança curta nas mãos, se deslocar. Movimentou então sua pedra: peão na casa quatro do rei e viu Balthazar ocupar o espaço indicado. O sultão anunciando peão na casa quatro do Al-fil² respondeu: peão toma peão. Era uma jogada en passant, e Othon se deslocara duas casas, eliminando uma pedra dos árabes.
Olhou para o lado e viu o brilho no olhar do sultão – apreciara a ousadia da jogada. Continuaram movimentando as pedras; o sultão colocou peão na casa três do vizir, Guido respondeu com cavaleiro na casa quatro da torre, era a sétima jogada. Guido viu o dromedário com a torre de madeira no dorso, e ao lado o guia árabe o conduzindo. Respondeu com peão na casa três do vizir, e nesse momento o jogo parou. Andrea, que era o vizir, estranho naquela vestimenta oriental, com um alto turbante indicando a importância da peça, foi substituído por outra figura, a Farzia³, uma jovem aia muçulmana, vestida com toda riqueza, já que não havia mulheres no grupo de Guido. Os espectadores diante da evolução do jogo começavam a murmurar. Seria o estrangeiro tão hábil que derrotaria o defensor da verdade? Nesse caso teria ele a liberdade, ou a ousadia lhe custaria a vida? Oito lances à frente o sultão colocou um cavaleiro, montado em corcel branco, cimitarra na mão direita, na posição três da casa do Al-fil. Guido pensou: colocaria seu Al-fil na casa dois do cavaleiro, e assim bloquearia o movimento deste. Mas a consequência dessa jogada levaria à possível vitória. Seria interessante derrotar e obter a promessa do sultão, ou isso lhes custaria as vidas? Hesitou, e movimentou o Al-fil para a casa quatro do bispo; no tabuleiro o pequeno elefante, guiado por Udo, ocupou sua posição.
O sultão sorriu pela fraqueza do adversário e movimentou sua pedra. Quatro lances à frente o sultão anunciava Farzia na casa seis do Al-fil, e xeque. Guido respondeu com cavaleiro toma Farzia. O sultão levantou-se e anunciou: Al-fil na casa sete do cavaleiro, e xeque-mate.
Guido ergueu-se, fez uma reverência e cumprimentou o sultão pela vitória. Atrás os nobres mamelucos se congratulavam pela brilhante vitória do sultão; na praça os viajantes estavam cabisbaixos pela perspectiva certa de escravidão.
Al Malik as Salih fez um gesto, e os nobres pararam de falar e comentar o feito. Dirigindo-se a Guido, falou:
- O jogo que terminamos hoje será lembrado para todo o sempre como a Partida Imortal. Eu assim quero e ordeno que seja registrado pelos calígrafos. Pensei durante a partida na proposta que lhe fiz, e você deveria cumpri-la, porque é o perdedor. Entretanto Al Malik é o Magnânimo, a Justiça Perfeita, o Defensor dos Fracos, e por isso quero e ordeno que sejas libertado da promessa feita. Terá a liberdade e tudo o que lhe prometi como um vencedor, pois essa é a expressão de minha benevolência. Sua riqueza será a nossa riqueza, seus caminhos serão os nossos, e o que fizer será pela glória de nosso nome. Tanta ousadia e bravura não poderão ficar sem recompensa, e essa é a minha recompensa.
Guido lançou-se ao chão, ajoelhando-se e agradecendo mentalmente ao giro da Roda da Fortuna. Na praça, os homens de Guido, de joelhos nos seixos brancos prosternavam-se diante do sultão. Guido ergueu-se, e ouviu o Vizir do Sultão dizer: Essa é a expressão da benevolência da verdadeira fé, mas não se esqueça da glória do saber do sultão.
Entre dentes, Guido murmurou para si mesmo: Summa Scientia nihil sciere ( o maior conhecimento é nada conhecer).
Notas:
¹ Shatranj – o jogo de xadrez.
² Al- fil – era o elefante no jogo oriental, no ocidente passou a ser o bispo.
³ Farzia- no antigo jogo o Vizir era o Farz, que no oitavo lance se transformava em Farzia; no ocidente passou a ser a Dama, e depois a Rainha.
Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 04/03/2012
Código do texto: T3534734
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.