Corvos azuis não me têm com carinho

- Nós sabemos que você é o assassino.

E lá estava ele mais uma vez.

Por alguma forma de corrupção que ele desconhecia as pessoas sempre achavam que ele era o culpado. Neste caso, já tinha se olhado várias vezes no espelho. Mas por mais que tentasse não via ali alguém com cara de quem cometeu um crime. Pelo contrário, achava que tinha cara de coitadinho. Mas infelizmente o mundo não compartilhava deste pensamento. Ele era SEMPRE o culpado.

Quer ele quisesse ou não.

Na escola sempre ia para a coordenação. E até que conseguisse provar sua inocência, ele já tinha ficado de castigo, ou apanhado, ou já estava morrendo de fome por não poder lanchar, ou ajoelhado no milho, ou tinha sido espancado por um coleguinha, ou ridicularizado na frente de toda a classe, ou empurrado escada abaixo, ou...

No final sempre recebia aqueles tapinhas nas costas, “Bem, desculpe, agente se engana, não é mesmo?”, e no dia seguinte lá estava ele sendo acusado uma vez mais. Achava que as pessoas compartilhavam de alguma memória efêmera em relação a sua pessoa. Por mais que ele provasse ser inocente, nunca recebia o beneficio da dúvida. Talvez fosse uma maldição.

Talvez, ele supunha, o mundo fosse uma piada gigante. Deus estaria lá em cima, cercado por anjos, apontando pra ele,

“Veja só o Dominique, dia após dia ele é achacrado pelos outros. E o pobre diabo nem sabe o que lhe acontece”,

e todos dariam risada de sua desgraça mundana.

Mas ele sabia. Ou achava que sabia.

Sua vida era surreal.

O culpavam por toda e qualquer coisa. Se havia um eclipse solar, algum idiota sempre iria surgir do nada e lhe atribuir alguma responsabilidade por aquilo. Se o foguete da NASA explodisse durante o lançamento, um bêbado apareceria não se sabe de onde para lhe proferir palavras indecorosas e culpá-lo pela manutenção incorreta da aeronave.

“Porra! Como se uma criança de oito anos tivesse culpa da manutenção incorreta de uma aeronave da NASA”

Isso sim era surreal.

É claro que ele ficava irritado, e muito. Mas com o passar do tempo descobriu que não adiantava. Ficar irritado só faria mal para ele mesmo. Então decidiu não ligar. Não importava se ele ficasse horas e horas sentado encarando a parede. Ele era inocente e ponto. E mesmo que fosse culpado, não se importaria. Ele acreditava fielmente na sua inocência e ficava por isso mesmo. Ninguém ia poder provar nada.

E depois ele ia crescer. E os castigos iam acabar. Quem ia botar um adulto de castigo?

Ele cresceu.

E os castigos acabaram. E ele pode viver em alegria. Sendo acusado uma vez ou outra. Canetas que tinham sumido. Uma carteira roubada. Uma esposa infiel. Uma fraude no seguro...

Mas agora era grave. Talvez de todas as acusações em vida, esta era a mais perigosa. E com toda a certeza seria a mais difícil de escapar.

Um assassinato.

Por alguma razão que desconhecia aqueles policiais achavam que ele tinha matado uma garota de quinze anos.

Por que ele faria isso? Por que alguém acharia que ele faria isso?

Agora ele estava naquela sala, sentado numa cadeira desconfortável, olhando para umas fotos terríveis em cima da mesa de uma garota que ele nunca tinha visto.

E esse era o seu primeiro dia de férias. E ele planejava viajar pra Colômbia.

- Vamos, bonitão, é melhor você confessar. Se você colaborar com agente, a sua pena pode ser reduzida, sabe, se você mostrar que se arrependeu – disse uma voz feminina que se esforçava para não ser sexy e não conseguia.

Uma policial sexy. Era tudo que ele queria.

Era uma bela loira. Alta, como todas as loiras, bem, talvez nem todas. Cabelos que chegavam até seu ombro. Olhos suaves, mas que com toda a certeza lhe penetravam a alma, castanhos por sinal.

Ele sempre achava que se um dia fosse preso que fosse por uma bela policial. Talvez ele deixasse ela o revistar e depois fariam as maiores perversões possíveis.

Sua parceira a olhava calmamente. Os olhos da loira o fuzilavam.

Tenente Montoya, ou algo assim.

Dominique sabia que aquele era o típico joguinho bom tira e mal tira. Já tinha visto muitos filmes para saber disso.

“É um clichê essas duas policiais lésbicas fazerem isso. Elas pensam que eu sou idiota?”, pensou. E logo seu lado mais centrado interveiu.

Uma coisa interessante em Dominique eram suas múltiplas personalidades. Nada de nomes diferentes, personagens diferentes. Ele não era Dr Jekyll nem Mr Hide.

Mas ele era dividido em partes.

Tinha aquela parte racional, que sempre procurava a saída mais lógica e segura.

Tinha o idiota, que sempre fazia alguma coisa estúpida, tipo derrubar a louça favorita de sua tia-avó, ou fazer alguma burrada.

Tinha também a parte pervertida, que não podia ver duas mulheres juntas que já ficava na expectativa de que elas iriam trocar carícias ousadas. Talvez esse fosse apenas uma ramificação do seu lado idiota. E essa era a parte que ele mais odiava.

Tinha também o louco. Aquele que sempre falava coisas sem sentidos. Vomitava conspirações inverossímeis. E dava um jeito de cruzar uma raça alienígena com o governo norte americano.

Em cada momento uma dessas quatro personalidades estava no comando.

Agora o racional tinha expulsado o pervertido do comando.

- Desculpe. Não sei por que vocês pensam que eu sou o culpado pelo assassinato desta jovem. Eu nunca a vi em toda a minha vida. Só pode ter acontecido alguma confusão. Eu entendo, essas coisas acontecem. Toda minha vida fui confundido com outras pessoas, e sempre fui acusado de crimes que não cometi. Sou inocente. Especialmente nesse caso. Assassinato? Francamente. Eu jamais seria capaz de cometer algo desse tipo. Claro, eu não sou tão puritano em dizer que sou o mais santo dos mortais, mas eu nunca iria matar alguém. Não faço idéia que tipo de mal entendido foi esse para vocês me tacharem de assassino.

Ele pensou nessa frase umas três vezes antes de falar. E depois que falou achava que não poderia ter dito melhor. Ele foi centrado, eloqüente e direto ao assunto.

Ele era inocente e ponto.

Agora era a parte em que as duas iriam rever o caso, dar aquele tradicional tapinha nas costas e falar, “Bem, desculpe, agente se engana, não é mesmo?”.

- Talvez porque suas digitais foram encontrada na arma do crime que por sinal estava embaixo de uma cama na SUA casa. Sem contar que achamos no seu armário uma roupa suja de sangue, que segundo exames de laboratório comprovaram ser da vítima. Esse é o mal entendido que nos levou a achar que VOCÊ é o criminoso.

Sim, também havia o lado psicopata. Aquele lado que vez ou outra faz você sentir vontade de pular no vizinho que escuta música alta às oito horas da manhã de um domingo. Aquele lado que leva você a desejar a morte do seu chefe quando ele critica o seu trabalho primoroso de uma semana e manda você refaze-lo. Sim, aquele lado inerente e obscuro que existe em todo o ser humano. E que a cada dia cresce com o ódio que as pessoas ao seu redor o alimentam.

E nesse caso ele era culpado.

Só não sabia por quê.

Thom Ficman
Enviado por Thom Ficman em 21/01/2007
Código do texto: T354386