Dom Agouro.

Dom Giuseppe Pastini Agouro, ou simplesmente Dom Agouro, como era conhecido lá pelas bandas da Alameda Sortiléggio, nasceu no dia 09 de agosto de 1.945, às treze horas, no dia em que as Forças Armadas dos Estados Unidos da América lançaram a “Fat Man” sobre as casas das famílias japonesas, num dia em que a energia derreteu pessoas que corriam, e cinzas mumuficaram senhores e crianças que dormiam, mesmo há quilômetros de distância. Oitenta mil pessoas morreram nas mãos da “Fat Man”, outras milhares foram caindo aos pedaços no decorrer do tempo, devido à radiação.

Sabe-se que no dia em que Dom Agouro nasceu, aproximadamente oitenta e duas mil pessoas morreram.

Nesse mesmo dia, um dia negro para a história da humanidade, a mãe de Dom Agouro sentiu que seria o dia.

Sem marido, sem emprego e muito triste (naquele tempo, e para Dona Concheta, não existia depressão, ficava-se triste mesmo), Dona Concheta Pastini Agouro ficou grávida sem ao menos perceber. Só se lembrava que algo estranho ocorrera no dia em que entortou o caneco de vinho tinto suave na Taverna Peste Negra, lá pelo fim de novembro do ano passado, quando havia pedido a dispensa da porcaria do emprego de auxiliar da sapataria onde o velho bêbado, porco e safado vivia querendo lhe enfiar o palmito. Lembra que pediu despensa, pegou os trocados que o velho lhe ofereceu como rescisão, o palmito deixou pra lá, e rumou cabisbaixa para o Peste Negra. Naquele dia queria se embriagar, e conseguiu. Embriagou-se tanto que acabou engravidando sem saber, coisa muito rara naquele tempo.

No hospital, já sentindo dores fenomenais, dona Concheta se concentrava para não morrer. Mas, para a surpresa e desespero de todos, o médico parteiro, Sr. Rocca, morreu de enfarto fulminante assim que tocou a mão na barriga de Dona Concheta. Chamaram a enfermeira mais velha, Albertina, e a mesma, com muita reza brava, sangue, suor e lágrima, conseguiu arrancar Dom Agouro do bucho de sua mãe, que a esta altura jazia inerte, mais pálida que um cadáver, mas viva.

Minutos depois, Albertina, que fazia o acompanhamento dos enfermos da ala dos infecciosos, se escorregou na imprudência de uma casca de banana jogada ao pé da porta do banheiro, socou a testa no vaso e faleceu com a cara na privada e as calças arriadas, toda borrada. Pobre mulher, “trabalhou honesta e dignamente a vida toda para acabar nessa situação”, diziam as carniceiras de plantão.

Dona Concheta logo pediu alta médica e levou seu pequeno Dom Agouro pra casa, embalado num manto negro, roto e puído, o único que tinha na ocasião.

Dom Agouro sugava até o último caldo de sua mãe, que definhava. Sugava com tamanha voracidade que chamou a atenção da vizinhança, que com o tempo se apiedou e passou a ajudar com leite em pó. Na medida em que o tempo ia passando, coisas estranhas iam acontecendo nas proximidades de onde a criança se encontrava. A mãe, pobre Dona Concheta, foi internada com severos transtornos mentais, que a impossibilitou de exercer seu poder maternal. Dom Agouro passou para os cuidados de duas vizinhas, irmãs solteiras que moravam juntas num casarão bem defronte à sua antiga casa, que fora absorvida pelo débito de impostos atrasados, e entregue ao Estado. Nisso, a partir de então, Dom Agouro não tinha nada na vida, nem mãe, nem pai, nem dinheiro ou herança. Além disso, de não ter nada, carregava uma série de infortúnios que o marcariam durante a vida toda.

Era daqueles que carregavam nuvens negras por sobre a cabeça. Tudo era motivo para problematizar os acontecidos. O mínimo detalhe de que algo não estava certo, não era esquecido. Nada passava em branco. Quando os agouros não surgiam naturalmente, através de uma simples troca de olhares, ou o roçar das células, um esbarrão na calçada ou mesmo beber no mesmo copo, acontecia de modo forçado, uma vez que Dom Agouro não deixava passar a possibilidade de que o pior poderia sempre acontecer, ou, mesmo acontecendo diariamente à nossa frente, nós, de alguma forma desleixados, sequer percebíamos.

Segundo ele, estamos caminhando acelerados para o buraco. Nossa própria vida é um desvio da Natureza, um descuido da Santa Mãe Natura, que nos permitiu brotar do nada para por fim quase que assassiná-la a sangue frio, covardemente, fechando os olhos para os milenares ensinamentos atinentes ao respeito à Terra, enterrados juntamente com as ossadas dos milhares de Índios Americanos dizimados pelos iluminados europeus filhos de Deus.

Para Dom Agouro se sua mulher está resfriada, pode ser sinal de doença grave. Se está freqüentando manicure ou cabeleireiro, é sinal que está traindo... Na sua presença as crianças convulsionavam, os gatos botavam sangue pela boca, os ventos se acentuavam, escurecia-se o tempo, plantas murchavam e morriam, os religiosos corriam para seus templos, a segurar símbolos e cruzes, aspergindo água-benta por todo lado, os filósofos, quando não enfartavam como o Dr. Rocca, paravam calados nos cantos se perguntando como e porque; os governos buscavam soluções razoáveis, sem que fosse preciso extraditar Dom Agouro, ou mesmo mandá-lo para uma ilha deserta; a sociedade o repelia, mas ao mesmo tempo o mantinha como um objeto de espanto e estudo. Uns selvagens até pensaram um dia em por fim à sua vida, mas logo desistiram, com medo de que, caso matassem Dom Agouro, todo agouro do mundo recairia sobre eles.

Mulheres, Dom Agouro teve algumas no decorrer de sua longa, fatídica e traumática existência, mas todas que se atreveram morreram jovens. A última, Felizberta Raboni Faxina, morreu espetada por um estrepe de aroeira. O pequeno furo no dedo infeccionou de tal forma que Dona Raboni Faxina acabou indo para o desconhecido.

Dom Agouro era a verdadeira encarnação do azar. Um dia levaram-no para o Morro da Cabeça da Mula, que ficava nos arredores do vilarejo, cercado pelo lago que o abastece, mas não deu certo. Passadas duas semanas o lago estava seco e a população desesperada. Como saída, tiveram que resgatar Dom Agouro de volta. E não é que o lago se restabeleceu!

Nisso Dom Agouro ficou tido como uma espécie de amuleto daquele povoado, daquela região, tanto que, quando morreu, aos 98 anos de idade, isolado no casarão das duas irmãs loucas, as autoridades mandaram que seu corpo fosse enterrado de cabeça para baixo, na posição vertical, na entrada do vilarejo, e que por sobre ele plantassem, com urgência, uma paineira...

Em sua lápide consta a seguinte inscrição:

“Aqui jaz Giuseppe Pastini Agouro (1945-2043)

Sem culpa por ter nascido

Ano 2.043 do Nosso Bom Senhor Jesus Cristo”.

SAvok OnAitsirk, 15.03.12.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 15/03/2012
Reeditado em 15/03/2012
Código do texto: T3555556
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