O escritor (março de 2012)

“Morte às cinco horas – um romance”. O trabalho de dois anos estaria quase terminado. Doze capítulos do livro já haviam sido enviados para a editora e os três capítulos restantes não tardariam a ficar prontos. No ritmo em que estava o trabalho, talvez em mais duas semanas ou, no máximo em um mês, o livro estaria totalmente terminado e entregue à editora.

Uma taça de café com conhaque descansava a um dos lados da escrivaninha do computador em que trabalhava Sílvio. O café frio com o conhaque o ajudava a não dormir por toda a madrugada. Já eram quatro horas da manhã e ele não pregava os olhos desde a tarde anterior, desde a tarde de domingo. Começava uma segunda-feira insone, mas não reclamava.

Ao entrar em contato com a luz do luar, o azul dos ladrilhos do prédio vizinho brilhava. No pequeno escritório dos fundos do apartamento de Sílvio, o azul dos ladrilhos refletia através da janela e, dominava tudo. O pequeno escritório improvisado nos fundos do apartamento, às quatro horas da manhã, era azul turquesa.

A vida pessoal de Sílvio, no instante em que escrevia, ficava a quilômetros de distância. Perto de seu café com conhaque, a separação, o divórcio, não o incomodava mais. Enquanto escrevia, repousava sua atenção na impermanência das coisas. Esta, a sua ideia do que seria escrever: debruçar-se sobre a impermanência das coisas. A vida pessoal, essa corria ao longe.

Sílvio vinha de um casamento de dez anos, sem filhos. Marieta resolveu deixá-lo quando percebeu que na vida de Sílvio não havia lugar para ela e a literatura do marido. Antes da separação, tinham em média duas discussões por dia acerca da falta de comunicação entre o casal. Sílvio sentiu muito, não desejava separar-se, mas teve de aceitar o divórcio.

Fazia muito calor no apartamento. Era verão e, embora todas as janelas estivessem abertas, havia pouca brisa. Nas ruas, as árvores raramente se mexiam. Todo este calor fez com que Sílvio se desnudasse, tirasse toda a roupa até ficar de cuecas. O apartamento vazio permitia a ousadia, uma vez que ninguém o veria assim, quase nu.

Suas mãos, sobre o teclado do computador, estavam trêmulas. Esta madrugada trazia, ainda que de longe, muita tristeza. Quando se sentia triste, tremia as mãos e as pernas. Decerto, alguma sensação de medo do futuro, o medo de que não possa decidir por si mesmo sua sorte. É claro que isso teria a ver com o fim do casamento que lhe trazia dor e medo do futuro.

Mas, retornava novamente para a escrita e o tremor nas mãos quase desaparecia. “Se não fosse escritor”, pensou ele, “não posso imaginar o que então eu seria”. De fato, escrever era o que lhe salvava de uma depressão nervosa grave. Tinha de escrever, para assim garantir o sustento e, por que não, a saúde também.

“Nada permanece inalterado, tudo está em constante mudança.” Refletia Sílvio sobre sua própria ética: “Não terei medo, terei respeito pelo que virá e o que virá a ser. É importante não tremer frente a um futuro incerto, é importante não ter medo do futuro.” Dito isso, levantou-se e foi à procura de mais um trago de conhaque e um pouco de café na cozinha.

Gostava muito de sua coleção de imãs de geladeira. A porta da geladeira estava totalmente coberta deles: azuis, vermelhos e amarelos. Havia morangos, havia laranjas, pequenos sóis e algumas luas. Alguns ímãs eram de pizzarias. Outros, de serviços de gás e concertos de fogão. Havia muitos ímãs, distribuídos uniformemente por toda a superfície do refrigerador.

A madrugada não cessaria de acabar. No relógio da cozinha, eram cinco e meia da manhã. A lua, que até então cobria o apartamento com luz azulada, já deixara em penumbra todo o ambiente. “O sol surgirá em breve”, pensou Sílvio tomando à mão o bule de café e entornando o conteúdo na pequena taça já servida de conhaque.

“Onde estão meus óculos?” Perguntou para si mesmo e procurou aqui e ali na cozinha. Nada. Foi até a sala e procurou sobre uma estante repleta de porta-retratos. Nada. Voltou dali para o escritório e pôs-se na penumbra, sob a luz predominante do monitor do computador e nada. Por fim encontrou-os debaixo de uma almofada no sofá do escritório.

O sol surgiria em breve, como percebeu Sílvio. O sol chegaria em breve e traria consigo sua mãe – em uma segunda-feira por Sílvio muito desejada. Adorava segundas-feiras. Começar uma semana, empreender desde o início uma jornada. E nenhum dia era igual ao outro, por conta da impermanência das coisas. Nenhum dia seria igual ao começar de uma segunda-feira.

E então sua mãe surgiria depois, junto com o novo dia. Já eram cinco e meia da manhã e, provavelmente (conforme o combinado de mãe e filho), provavelmente sua mãe estaria a tocar seu interfone dentro de meia hora. O pretexto da visita? Ajudar o recém-divorciado na limpeza do apartamento. “Antes de mamãe chegar, visto as calças e a camisa.” Pensou.

Continuou Sílvio a divagar: “Sou o renomado escritor de novelas policias, que não soube levar adiante o casamento, e estou aqui, à espera da mamãe para ajudar-me a manter-me vivo e com higiene.” Aí digitou no computador: “Capítulo XII – O Inspetor Encontra Outra Vítima”. Aproveitando essa deixa, pôs-se a emendar palavras e a escrever novamente com vontade.

Suas mãos, trêmulas ao levar a taça de bebida à boca, o preocupava. Mas o ato de escrever era curativo. Quando escrevia, esquecia-se daquela dama, sua ex-mulher, representada em quase todos os porta-retratos do apartamento. Não sabia mais se a amava, mas a verdade é que não conseguiu remover as fotografias dela, que estavam espalhadas pelos quatro cantos da casa.

“E, então, recapitulando” Refletiu, “Escrevendo eu me deparo com minha visão da impermanência das coisas. A impermanência que vejo significa que não há tristeza que não encontre fim, não há solidão que não termine, não há infelicidade que seja perpétua.” E pôs-se a escrever novamente.

Seus dedos saltavam de um lado para o outro do teclado do computador em átimos de segundo quando, de repente, a campainha do interfone tocou. Era finalmente sua mãe, chegando junto com o começar de um novo dia. Sílvio apressou-se a vestir calça e camisa, e abriu a porta do edifício para sua mãe. Na cozinha, o relógio marcava seis horas da manhã.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 22/03/2012
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3569384
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