TRAVESSA

Sabe aquele dia que você acorda simplesmente contrário? Pois é, ela costuma despertar assim. Avessa. Superexposta. O que acontece é que não é alma dentro do corpo, é corpo dentro d’alma. Consequentemente vive vítima de suas emoções... que gritam, reluzem inteiramente à mostra... pensamentos jogados em outdoors, um bombardeio sentimental estatelado no meio da rua, sujeito à dura vida.

Você, sábio senhor, explica? Imagine-se vítima de si mesmo. Feche os olhos e enxergue-se refém da sua alma. Sim. É difícil.

Emoção, a mais poderosa das sequestradoras.

Lá longe o som irritante do despertador. Primeiro pensamento do dia: “não agüento mais essa rotina”.

Em meio a bons dias, relaxa.

Banho, café, torradas, dentes. Está pronta.

Diante do espelho do elevador percebe algo mais profundo do que a própria imagem refletida... observa que a vida voa, e vai... e ela continua assim, estática, atonitamente passiva ao tempo. “Ah o tempo”, suspira quase chorosa... só ali... ela, sua imagem e a máquina.

Diante da rua movimentada surge o receio, a velha dúvida de se estaria sendo observada. Teria mania de perseguição? Ah! Narcísica!

Na parada 2 o CDU/Shopping, o cobrador de sempre, fazendo a mesma pergunta medonha: -Tem 10 centavos? Mesmo sabendo não ter, leva as mãos aos bolsos... –Poxa não tenho.

Milagrosamente um lugar à sombra e ao lado da janela. É a sorte grande!

Ventos, cabelos, pessoas, paisagens e aquele mesmo pensamento...

O tempo.

Eu.

A passividade diante do tempo malandro.

Já encararam os olhos travessos do tempo?

Perturba.

Ali sentada naquele ônibus, ela olhos nos olhos com o tempo.

O vento vindo da janela inspira a alma a querer voar, ela... tão desprendida do corpo.

Sabe, muitas vezes essa anima vive mais que gente. Corpo padece, ela se fortalece.

Tenho plena consciência da minha cumplicidade. Na verdade, deve até haver aí uma espécie de Síndrome de Estocolmo, já que mesmo sendo refém da Emoção, sou completamente apaixonada por essa bandida, fora da lei.

Às avessas vivo para enxergar meu outro eu... corpo e alma em um efêmero eterno amor.

Mas isso é segredo.

Chegou, dei sinal, é hora de descer a alma, as emoções e do ônibus quase vazio.

E passiva vou, a sequestrada. Deixo nas mãos do tempo meus abusos.

Érika Bandeira de Albuquerque
Enviado por Érika Bandeira de Albuquerque em 22/03/2012
Reeditado em 27/08/2013
Código do texto: T3569798
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