O VELHO CASARÃO.

Ao adentrar aquela casa santa tive vontade de tirar os sapatos
num ato de reverência às vidas que nela habitaram.

Santuários não são igrejas. São velhas construções cheias de histórias,
cheias de vidas alheias cansadas, de almas que labutaram
para o ganho do pão santo suado.

Contudo, se impotentes algumas se sentiram, nunca falaram,
essa é a vida que conheceram;
no mais, é fantasia, devaneio.

No piso de madeiras gastas
- faltando lascas, emparelhadas e algumas empenadas -
feito de encaixe de uma a uma, lado a lado, as madeiras,
escurecidas e disformes, têm missão de assoalho,
ficam estáticas fixas com grandes pregos, abaixo delas,
pedras as separam do barro. da água.



Pensei: “são madeiras mortas!”.


Contemplei os umbrais de toras grossas,
 fortes, firmados.

Madeiras que, talhadas com facão,
alinhadas à força,
 receberam a missão de sustentar
- são a base, vigas, pilares, -

sustentam a construção e as madeiras menores
que suportam as telhas de barro.



No peitoril das janelas,

- onde se debruçam poucas moças e muitas velhas

que velam a rua e o povo que vai e vem nela, em ondas e marolas - 

as madeiras foram mais afortunadas,
ficam ouvindo estórias,

recebendo sol e vento, chuva e sereno e o roçar de cotovelos.

Nelas, se penduram colchas de retalhos, crochês e bordados

ou uma simples  jardineira com flores singelas.



No alpendre -  pequena entrada da casa -
o chão  de ladrilho quadriculado,

conversam duas cadeiras preguiçosas
rangendo as velhices do tempo.



Adentrando o corredor longo, comprido, 
cheio de portas
que dão para os quartos,

não se chega à sala, mas a uma cozinha enorme.


Lá, fogão à lenha de pedras douradas, panelas pretas,
bule de esmalte, 
prateleiras
- com barrados, feitos de linha branca, que imitam a renda fina -

guardam mantimentos em latas, e gamelas com frutas.

Xícaras penduradas pelas asas voam acima dos copos e da botija d’água.

Cabaças grandes e pequenas  amarradas por corda enfeitam. 

Panos,  bordados nas tardinhas das velhas, cobrem  pães,  bolos e biscoitos...

A vida desenhada em pontos por mãos cansadas

pontos cheios, pontos vazios, pontos altos, pontos baixos.


Réstias de alho e cebola, perto do fogão, penduradas, 

aguardam a hora do tempero. 

Pimentas de todas as formas e cores, em vidros acondicionadas, 
colorem o ambiente.

De igual forma estão as compotas e as frutas cristalizadas,
todas ornantes e ornadas,
convidam  ao sabor doce da vida. 

Uma mesa grande, de madeira maciça
- ladeada por bancos longos e pesados -

recebe para a hora sagrada da comida seres famintos de tudo.

As mãos duras e calejadas da lida na terra arada
levam à boca, em cheias garfadas, arroz branco e solto,
cheirando a muito alho, feijão suculento, frango fritado
e depois caldeado com o amarelo  açafrão, cebola, cheiro verde e quiabo, que milagrosamente não ficou gosmento.


Polenta de milho verde, tomate vermelhinho e doce,

alface verde forte, grosso e saboroso.

Enquanto comem, ainda com a boca cheia, despejam,
uns para os outros, 
as marmotas às risadas...
falam sem cerimônia da diarréia do Tonho...

São estórias miseráveis da roça: as pragas, o agrotóxico feito sem o manejo adequado, as enchentes, o sol...


A mãe e avó ficam "de pés", barrigas no fogão: 

uma alimenta o fogo, a outra mexe o feijão.

Ao mesmo tempo, preparam a matula numa panela de barro

tampada com um prato de esmalte descascado.

A matula é, então, amarrada com um pano de saco alvejado   

- pelas quatro pontas - com dois nós.

É a refeição de quem ficou no roçado.

Com ela não segue talher nem nada,
só um pouco de água
numa garrafa pet esverdeada. 


Demanda cumprida, só então é que Mãe e a Vó se servem, 

fazem de pratos as panelas, nelas comem os restos, as raspas...

Toda a "mistura" amassada vai à boca, 
vai pela própria mão. 


Eu, à mesa, sentada no banco, bebendo água da "táia", as observo. 

De cócoras, as duas mulheres, finalmente descansam,
finalmente comem.  

Dona  Fizinha sorri banguela e diz que isso é que é “baun”!!

"cumê cuma si fazia antis... cada montim di mistura  é  Capitão...".



No quarto: uma cama forrada com lençol de algodão branco puríssimo 

-   cuarado ao sol, sem cheiro de nada, nem de sabão  - 

por cima uma colcha feita no tear  e dois travesseiros pequenos e finos. 

Na mesinha ao lado
- ornada com forrinho de crochê -

um copo e uma vasilha de alumínio areado.

Uma cadeira de madeira, dura, sem almofada.

No chão, ao lado da cama, repousa  um tapete:

um saco de estopa cheio de pedacinhos de tecidos coloridos, 
meticulosamente dobrados e encarreirados, 

formam um peixe cheios de escamas.


No teto uma luminária,
feita de palha e cipó,
desenha sombras nas paredes...



Assim foi o primeiro dia, da mulher urbana no interiorzão.

A noite cai cedo, e o movimento do casarão cessa, escuridão. 

Penso em repousar tranqüila nos lençóis de algodão. 

De fora coaxam sapos, corre o rio, cantam grilos...


Há um mundo de zoeira que não reconheço.

Respirando a resina de um tempo que não me pertence,

de uma realidade de que não falam os jornais. 


Adormeço ouvindo o ranger das madeiras,
todas falantes, todas revoltosas, todas anunciando:

“Não, não estamos mortas!”.





Goiás Velho, 23/11/2006.

Foto: "Reflexo"  - Casa de Cora Coralina, Goiás Velho 11/2006 -  de Divina Jatobá 
Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 24/01/2007
Reeditado em 17/12/2011
Código do texto: T357460
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