Velha Revolta.

Depois de passar mais de sessenta anos sendo passada pra trás, pagando o impagável, comendo o “pão que o diabo amassou”, freqüentando filas públicas e impudicas, portando o desespero, o RG e a marmita do dia, dona Maria saiu pra luta.

Pegou a Constituição Federal, antigo exemplar entregue a todos os brasileiros no ano de 1.988, juntou algumas economias de longa data, algumas roupas velhas, sacou a aposentadoria do mês e rumou pra Brasília.

“Queria resolver algumas pendengas”, dizia, suarenta, trêmula e nervosa, para suas duas últimas amigas sobreviventes à velhice no Brasil.

Saiu de casa logo ao alvorecer, acelerando sua motocicleta Suzuki Intruder 86, modelo 87, como fazia questão de realçar, comprada em 60 prestações que quase lhe tiraram a vida, e pisou fundo, rumo à Capital Federal.

Por onde passava era vista como velha louca desvairada. “A velha pirou”, disse uma criança desavisada, sem tirar o olho do display do celular, mastigando um rufles mofado com a bandeira dos EUA estampado subliminarmente, assim como o Capitão América, o Homem-Aranha e o Super-Man, bem como tantas outras porcarias herdadas de nossas tradições de que o jardim do outro é mais florido.

Foram 487 km, seis paradas, até seu destino final.

Chegando lá, perguntou a um Chapa onde ficava o Congresso Nacional. O Chapa, que não era bobo nem nada, disse que só podia falar se recebesse um trocado em remuneração. Mas, para complicar, nem dizendo iria adiantar, já que era complicado demais. Teria que ir na garupa da velha Intruder a fim de que pudesse ser preciso na sua informação de Chapa respeitado na região. Afinal, são dezenove anos trabalhando como chapa naquele ponto. A velha topou sem mais delongas, estava com pressa, e mandou que o Chapa, um negão de aproximados 90 quilos, montasse na garupa e começasse a informar o caminho. E assim foram. Passaram por algumas asas e chegaram ao destino, o famigerado Congresso Nacional, que mais parecia irracional, quando lidava com o povo em geral, e muito esperto quando o negócio era encher o próprio bolso de seus membros e comparsas.

A velha, ao vislumbrar tamanho monumento, desceu da motocicleta. Esbaforida, caminhou a passos largos até se aproximar de um guarda que veio ver o que estava acontecendo.

Ela nada disse, apenas se aproximou alguns metros, olhou para cima, respirou fundo, sacou a Constituição Federal de uma sacola amarela de supermercado, gerando um leve susto na autoridade, ergueu o exemplar de nossa Carta Magna aos céus, suspirou e acendeu um fósforo “Guarany”, ateando fogo na ponta da página onde começava o festejado (como gostam os juristas) artigo 5º, vendo página por página queimar e seus restos e cinzas se esvaírem aos ventos que corriam sobre os gramados do Congresso Nacional, tudo sob o olhar incrédulo do soldado, que nada fez.

Depois disso, dona Maria resolveu nunca mais pagar tributos.

E o silêncio imperou.

SAvok OnAitsirk, 02.04.12.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 03/04/2012
Código do texto: T3591619
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