Frida (abril de 2012)

Onze e quarenta e cinco da manhã, e a sirene do colégio soou duas vezes. Era o fim das aulas do período da manhã. Imediatamente, os alunos da quinta série B se alvoroçaram para a porta da sala de aula. Foi necessário que a professora Frida os advertisse: “calma, calma, é um de cada vez... deixe o colega da frente sair primeiro, por favor, vamos devagar!”.

Chamava-se Frederica. Para os colegas de trabalho, alunos e amigos, apenas Frida. Tinha como apelido o nome de uma artista famosa, de uma pintora mexicana, o que lhe agradava muito. Gostava da pintura de Frida Kahlo, da pintura da artista plástica mexicana, e os poucos que sabiam dessa comparação não hesitavam em dizê-lo, “Frida Frederica é artista desde sempre!”

Frida era apelido de infância, era somente uma contração natural para seu nome, Frederica. Ela duvidava que seus pais tivessem cultura o bastante para que conhecessem a obra de Frida Kahlo, a pintora. Frida (a professora) vinha de uma família muito humilde: seu maior sucesso na vida fora lecionar matemática para o ensino fundamental; em uma escola da periferia.

A sirene anunciava a grande pausa do dia, um hiato entre os dois turnos de aula em uma jornada única de trabalho. Cumpria duas: uma delas das sete horas até onze e quarenta e cinco, a outra de uma hora da tarde até as cinco e quarenta e cinco. Uma vez que todos os alunos deixassem a sala de aula, e o quadro estivesse limpo, podia dar por finalizado um turno.

Frida pôs-se a descer as escadas que levavam da sala dezesseis para o pátio com meticulosidade e muita destreza: ia deslizando devagar as escadas. Do pátio, seguiu com destreza no meio das crianças até a sala dos professores. Um menino lhe perguntou se poderia entrar com ela ali na sala, e Frida respondeu (docemente) que não, que fosse para casa.

Frida era feliz, gostava muito daquele empenho diário para suas crianças que eram, para ela ao menos, adoráveis. Eram, mesmo que se em um exagero, imaculadas: em tempos de férias, Frida não ficava quieta, pois que o que lhe dava total equilíbrio eram os seus queridos alunos. Sem eles, nas férias de Janeiro ou em junho, parecia faltar-lhe dentro alguma coisa.

Duas batidas na porta e entrou. Na pequena sala dos professores, cinco mulheres aninhavam-se ali. Primeiro os cumprimentos de Frida: “oitudobem, oitudobem, como foram as aulas? Sim, comigo tudobem...”. No escaninho, meteu-lhe as pautas de aulas; afastando de seu caminho duas bolsas, das outras professoras. Agora era a hora de refazer-se, de almoçar, e refazer-se.

Uma hora de descanso reservado para seu lanche diário entre um turno e o outro. Desabou sobre uma cadeira disposta ao redor das outras em uma mesa grande e redonda. Outras colegas, as professoras, pareciam exaustas. Algumas se queixavam de alunos problemáticos, enquanto as outras concordavam com as cabeças, silenciosamente.

Frida não lhes deu muita atenção. Teria que correr muito para almoçar antes do início de sua próxima aula, pontualmente à uma hora da tarde. Já as quentinhas dos professores não tardaram a chegar; vieram comprimidas umas com as outras no mesmo recipiente, um isopor velho (e valente), que trazia cuidadosamente as seis marmitas para os professores da escola.

A escola, da prefeitura, tinha salão de refeitório, mas por alguma razão desrazoada, não oferecia refeições nem para os adultos nem para as crianças que ali estudavam. Por essa razão, os professores reuniam-se diariamente em torno das quentinhas que dona Maria trazia, com todo o cuidado, para eles. Uma segunda opção, oras, seria comer salgadinhos na cantina.

Na marmita de Frida, carne ensopada com cenouras, arroz, feijão, e abobrinha refogada com ovos. Na quentinha das demais professoras, havia provavelmente o mesmo. Curiosamente, por conta do descaso em relação ao refeitório que não serve comida para ninguém da escola, a sala dos professores improvisava, com ironia ao redor da mesa redonda, um restaurante.

Enquanto comia, lembrava-se de seu filhote, de três anos de idade, que ficara em casa com a babá. Pensava em ligar para casa e saber se tudo estava bem entre a babá e Diego. Sim, Diego era o nome do filho de Frida, escolhido (mãe solteira que era), escolhido sozinho pela mãe, por conta da fantasia de Frida Kahlo pintora: Kahlo foi casada com o artista plástico Diego Rivera.

Lembrou-se das fotografias de obras de Frida Kahlo que viu na Internet. Para Frida professora, eram algo que lhe abria apetite. Cores fortes, vibrantes, lembravam perfumados pimentões e cheiravam provavelmente a abacaxi e abacates temperados. Refogadinhos de carne deliciosos nas cores das pinturas remetiam a professora à carne ensopada com cenouras da quentinha.

E Diego, como estava e o que fazia junto à babá? Que tipo de trabalho o mijão de três anos de idade daria para a babá neste instante? Sacou de sua própria bolsa o aparelho de celular e ligou então para casa. Atendeu a babá: “O Diego quebrou o vaso de vidro da sala de estar, mas já providenciei a limpeza e uma repreensão. Agora, tudo está em paz, não te preocupe.”

Mas Frida professora se preocupava sim com o que passava pela vida do filhote em casa. Pensou no vaso da sala, sem grande valor em dinheiro, mas com certeza uma arma que poderia cortar o filhote impiedosamente. Jurou para si mesma que nunca mais teria um vaso de vidro na sala de estar. “E ele se cortou?” perguntou Frida à babá:

“Ele cortou superficialmente o dedinho indicador direito, mas poderia ser muito pior se eu não chegasse a tempo. Fiz curativo, passei água oxigenada e mertiolate; depois de lavar a mão com água abundante e sabonete.” Ao que Frida praticamente grunhiu, cheia de alívio, e feliz com o trabalho da babá: “muitobrigadamininaobrigada.” “E nós nos vemos mais tarde? Sim, até lá!”

Uma mãe visceral, de amor visceral, eis o que Frida era para seu eterno bebê (já tinha três anos, mas, para a mãe, era seu eterno bebê). Naquele momento assim distante, ele ao alcance distante através do telefone, Diego a preocupava um pouco. Bastou então lembrar de que ainda teria um turno de aulas para dar para que voltasse a si: “Diego agora, só mais tarde.”

Estatelada sobre a mesa da pequena sala, ensimesmada no universo paralelo do pequeno Diego e sua babá, ali ficou Frida até que, em um sobressalto, ouvisse a sirene tocar duas vezes. Já eram quinze minutos para a uma da tarde: ora de voltar ao trabalho. Sonolentos, todas as professoras pegaram, cada uma, suas pautas de aula. Frida fez o mesmo e saiu.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 16/04/2012
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3616182
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