Coisas do além

Toda sexta-feira, quando voltávamos das viagens pelo interior do Paraná, nos preparávamos e então seguíamos rumo a represa Jurumirim. O velho Ernesto tinha lá um ranchinho simples, mas, muito bem cuidado, limpinho, sem nenhum exagero nas coisas. Aconchegante. Um pequeno barco a remos, algumas ferramentas agrícolas, um pouco de cabritos e cabras, algumas galinhas e um grande sossego. Da entrada da pequena propriedade até a casinha, ipês amarelos ladeavam o caminho, em época de florada tingiam de ouro aquela estradinha e faziam um tapete de pétalas a cobrir o solo. Fecunda natureza.

À noite ficávamos conversando sobre diversos assuntos, mas, o que mais se ouvia era causos e contos argentinos, posto que esta era a origem do Ernesto, que falava com saudade de tempos idos nos pampas. E alguns me arrepiavam dado que a especialidade do Ernesto era contar o inacreditável, de tal forma que eu, ainda menino, acreditava. E ele caprichava de tal forma que vivenciei uma destas situações que me encheu de medo naquele final de semana.

Tudo começou bem antes de chegar na represa, ainda na rodovia, a Raposo Tavares. Nosso veículo, uma perua ano 65, orgulho do Ernesto, cismou de dar pane na estrada. O argentino então olhou pra mim e disse calmamente para que eu passasse para o banco traseiro porque ele ia receber companhia. Desceu então da perua e foi até uma capelinha, destas que marcam acidente na estrada. Falou sozinho um pouco e voltou.

Abriu a porta do passageiro, esperou alguns segundos como se alguém estivesse tomando lugar ao seu lado, deu a volta e sentou-se ao volante. Deu um sorriso, bateu na chave e o motor respondeu, como se nada tivesse acontecido. E eu desconfiado que alguma coisa estava errada, já com um pouco de medo, aquele friozinho na espinha.

Seguimos viagem, e o Ernesto falando sozinho, rindo, discutindo, com se alguém estivesse com ele. De vez em quando me olhava e dizia: - Né, né memo? Antão...

E eu, queimando de curiosidade e medo, não ousava perguntar que diabo era aquilo de falar sozinho, Deus me livre!

Chegamos no rancho, era bem tarde, ele desdobrou duas camas de lona e depois uma terceira que me deixou confuso de novo. Fui me ajeitar numa delas e o Ernesto gritou: - Não nesta! Não nesta! Assustei-me, mas, fiquei em silêncio. Disse que era do amigo e prontamente concordei, de olhos arregalados.

No dia seguinte, bem cedo, ele saiu e foi ajeitar o barco. Levantei-me e fui buscar os remos,mas, quando cheguei no barco ele me disse que desta vez iria com o amigo remar na represa, procurar ninhos de socó, coisa que eu gostava de fazer. Perguntei então, desconfiado, se queria que eu deixasse os remos. Disse que podia levar um deles porque o amigo havia perdido um braço no acidente da estrada, portanto iria remar sozinho.

Eu já não suportava mais a situação e fiquei muito feliz quando terminou o dia e o Ernesto resolveu voltar pra casa. Então, de volta à Raposo, vi que, curiosamente, o banco do carona ao lado do motorista, estava achatado como se uma pessoa estivesse sentada lá.

Nova pane e estávamos parados na estrada, justamente naquela capelinha. O Ernesto saiu então, abriu a porta do carona se despediu, “de ninguém” a perua voltou a funcionar e seguimos a viagem de volta. Aí, ele começou a satisfazer minha curiosidade, o que me deixou pior ainda.

Contou que, alguns anos atrás houve um acidente feio naquele ponto da estrada, que teve como conseqüência a morte de uma pessoa. Ernesto viu o acidente, parou a perua, se aproximou e viu o finado, que havia perdido um braço que não pode ser encontrado. Por acaso o falecido morava na mesma área do rancho e sua alma seguiu de carona na perua do Ernesto. Desde este dia, toda vez ia ao rancho o dito cujo acompanhava e depois voltava com ele também, até o ponto do acidente. Foi então que o argentino mandou fazer a capelinha, para que o “penadinho” não ficasse ao relento.

Sei dizer que não me encoragei a voltar ao rancho.

É... Coisas do já falecido Ernesto. Contar melhor não sei, sei que foi assim... E meu imaginário infantil aflora sempre que me lembro desta passagem...

Paulo de Tarso
Enviado por Paulo de Tarso em 29/01/2007
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