O SENHOR DA CARIDADE SANTA

Chegou naquela miúda cidade como não queria nada. Não parecia pretensioso. Era silencioso. Se casado, não lembro deste detalhe, porque nas poucas vezes que o vi, percebei-o sozinho, cuidando de sua lida com esmero e humildade.

Se era religioso, parecia, pois não faltava uma missa sequer nos domingos. Vivia no seu mundo. Tinha diversas famas. Mas a principal era do “velho que fazia o bem”.

Nessa cidade pequena de grandes necessidades habitava pessoas carentes de afeto e de pão. E eis o nosso amigo sempre visitando as casas humildes e afaveladas com uma intimidade inquietante. Não entendi de pronto. Preferi entender com o tempo.

Nos dias de chuva consertava telhados dos pobrezinhos, tirando “lonas” de suas entranhas para amparar por um momento alguém que padecia de frio.

Um dos meus amigos tornou-se íntimo. E contou que chegara da capital e que passara por esta terra há algum tempo, que conhecia um pouco de nossa realidade, a ponto de abandonar tudo para fazer-se servos dos pobres. Não era um missionário como pode ter imaginado um leitor resignado, nestes tempos tão áridos nem os mais devotos padres são confiáveis em termos de caridade: pregam, mas não a vivem.

Certa feita, estava com um grupo de amigos e o senhor nos cumprimentou, interrompendo uma conversa acalorada sobre religiosidade:

-Boa tarde, senhores, o sol está quente, não, desejam algo para refrescar?

Aquela intimidade nos incomodou. Não entendemos, mas tentamos contornar nosso espanto aceitando picolés de bom grado e convidando o altivo senhor para habitar nosso espaço e compartilhar de nossa conversa.

-Amigos, continuou, a religião não é algo inerente e que se ganha de presente. É uma escolha. Não sou obrigado a seguir uma dada fé. Mas se sigo e se prego uma determinada religiosidade, não abraçando a irmã caridade, não sou mais que uma sombra.

Este tom poético me impressionou e questionou meus conceitos de fé. Pensara que bastava seguir a Deus e obedecer aos seus mandamentos para ser feliz e conquistar a Sorte. Mas, percebi nesta prosa de fim de tarde que me faltara o essencial.

-Venho eu lá das bandas do Recife para nesta pequena cidade concluir meu exílio nesta terra e quem sabe, merecer o bom repouso reservado para as almas puras – arrematou.

Não resisti e no silêncio de meus colegas interrompi:

-Senhor, percebo sua solicitude, suas maneiras, sua fé e devoção. Sou católico, fervoroso, participante e não tenho tanta atração por uma vida de abstenção em favor dos mais pobres. Sei que preciso ajudá-los, mas faço melhor rezando por eles, para que almas providentes como a do senhor possa distribuir o consolo a quem mais precisa.

Respondeu de pronto:

-Meu amigo, é muito bom buscar as coisas do Alto, rezar se abster de uma vida desobediente. Mas se não traduzo o que abraço em atos, de nada vale a minha fé. Quantas pessoas estão dentro dessa Matriz que bate agora as Ave-Marias e na verdade não passam de falsos religiosos, pois não desejam para si a pobreza, mas a ostentação dos altares!

Fui para casa aliviado e inquieto. E as frases do “bom velho” maquinavam na minha mente e me direcionavam para uma tomada de decisão.

Sei que dias se passaram e não mais presenciamos a visão magnífica, depois de dois anos consecutivos de boas obras, daquele velhinho.

Não sei que destino tomou, se faleceu ou se mudou.

Mas, na face juvenil daquele senil aprendi com certeza o que é o amor.