O laureado

Ainda não sabia escrever e inventava histórias que contava para os parentes, amiguinhos e quem mais lhe desse atenção. Alfabetizado, colocava tudo no papel. A gramática e a ortografia, meio que atropelava. Mas o conteúdo e a originalidade, sempre uma beleza.

Uma vez quase desistiu. Fez uma caprichada redação como dever de casa. Viu em um livro uma gravura mostrando o convés de um navio. Imaginou uma viagem transatlântica, mesmo sem saber direito o que isso significava. Largou o verbo no caderno.

Na manhã seguinte, na classe do terceiro ano, a professora mandou cada um apresentar sua tarefa. Orgulhoso, iniciou a leitura sem tropeços. Voz boa, dicção impecável.

Foi descrevendo em detalhes suas férias a bordo de um transatlântico gigante. Quando leu que se divertiu muito na piscina do navio, a turma caiu na gargalhada. Não acreditavam que navio pudesse ter piscina.

Cambada de caipiras, pensou ele. Nunca viram um navio nem em fotografia. Como podem duvidar? Não conseguem imaginar um navio grandão? Só conhecem canoa...

Riram tanto que até ele passou a achar que o livro estava errado e os colegas tinham razão. Debocharam até na hora do recreio. Naquele dia não lhe deixaram em paz.

Foi difícil superar o trauma. Uma semana sem escrever. Só na semana seguinte, por obrigação, fez uma redação sem nenhuma ousadia, sem graça. Água morna, nem gelada nem quente. Assim ninguém zombaria. Água com açúcar.

Agora, aguardando a vez para dizer o seu discurso, as lembranças da infância no pé da serra desenrolavam-se na cabeça dele quadro a quadro, como em um filme. O sítio do avô com todas as frutas e a bicharada bem cuidada. A paisagem das montanhas logo ali, ao alcance dos dedos. Na cidade, o armazém onde comprava o papel de seda e os fios para fabricar as pipas com os paus de paina sequinhos que colhia no campo, e também a fieira para rodar o pião. A igreja e a praça. O padre e o primo mais velho sacristão. Nas manhãs de domingo, coroinha ajudando na missa.

Criado entre a roça e a cidade pequena. Íntimo do carro de boi e conhecedor dos segredos do queijo famoso da Serra. Acostumado a aliviar-se do calor dos verões sob as cachoeiras de água fresca. Conhecia como poucos o sabor da terra e das matas, onde pisava com os pés descalços em respeito e gratidão à natureza pródiga.

Como chegara tão longe? Parte visível da resposta estava na plateia, como sua convidada de honra. Sem ela, provavelmente não teria aportado ali. E sem ela teria se recusado a participar da cerimônia.

A mulher que não crescera muito na estatura física, mas era altaneira nos sonhos, acreditou nele, no seu jeito de escrever e contar histórias deliciosas como queijo com goiabada. Sua espectadora mais importante naquela noite de gala, enfeitando o ambiente austero com sua morenice discreta e a cabeleira branquinha bem tratada, parecendo algodão doce.

Passado o trauma da piscina do navio, foi retomando seus escritos. O talento nunca morre. Começou a participar da Hora do Conto no longínquo ano de 2012. Junto com outras crianças, aprimorava o dom de contar histórias com a professora Maria. Muito mais do que ensinar, a mestra transmitia ânimo e incentivo à meninada, permitindo que o talento de cada um aflorasse sem pudor ou censura.

Chegou o dia de deixar a serra. Precisava garantir o futuro, entrar para a universidade. Foi para a capital. O sonho foi junto. Os pés ficaram.

A universidade ia lhe dar o diploma. Seria bacharel, doutor. A profissão, contudo, já tinha. Duas estreias no mesmo ano. O curso de direito na federal e o primeiro livro publicado: Contos da Serra. Nele retratava a vida simples do interior, contando histórias verídicas e outras nem tanto. Já era um escritor profissional.

O curso, ele foi levando. Já que começara, não custava terminar. E o terminou com mais três livros nas livrarias e um no prelo. Um romance.

Advogado mesmo, nunca foi. Nem o exame da Ordem fez. Ficou só no título. Ganhava a vida escrevendo. Os livros, coluna no jornal. Depois uma revista de circulação nacional e vários jornais. Até que não deu mais conta. A paixão eram os livros. A cada um que escrevia, o nível subia. Melhor sempre.

Dedicação integral. Palestras de vez em quando, em universidades mundo afora. Muitas na América Latina. Europa vez ou outra. Japão e Coréia. Austrália. Livros traduzidos para várias línguas. Inúmeras tardes de autógrafo nas mais famosas livrarias do mundo. Muitos prêmios nacionais e internacionais.

O curioso é que quando recebeu a comunicação da escolha, estava na terra natal, de onde os pés nunca saíram. Herdara o sítio do avô e nele fizera seu refúgio. Justo quando proseava com a Maria, o meio de comunicação da enésima geração avisou. Era da academia.

- Dia 10 de dezembro venha para a cerimônia.

- Vou levar a Maria. Minha convidada de honra. Sem ela não vou.

Em Estocomo, iniciando o discurso, olhando para a Maria de cabelos branquinhos no auditório, encontrou-se no patamar do chileno Pablo Neruda (1971), do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1982) e do peruano Mario Vargas Llosa (2010), até então os únicos escritores sul-americanos laureados com o Prêmio Nobel de Literatura. Só ele e o português José Saramago (1998), em língua portuguesa.

Depois de século e algumas décadas, a justiça se fez e finalmente um escritor brasileiro foi coroado com a mais importante distinção do mundo. E, para tanto, o destino o escolheu. Um aluno da Maria e, assim como ela, filhote na serra.

 
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N. do A. – Dedico este texto à Maria Mineira, pelo seu trabalho de incentivo à leitura e escrita, que vem desenvolvendo com as crianças de São Roque de Minas, região da Serra da Canastra, Minas Gerais, através do projeto A Hora do Conto. Oxalá esta história seja de fato uma profecia, exceto no que diz respeito ao tempo que o Brasil ainda teria de esperar para colocar um representante entre os laureados com o Prêmio Nobel de Literatura. Tomara que não precisemos aguardar tantos anos mais para a consagração e reconhecimento da nossa arte literária. Portanto, que o aluno da Maria não seja o primeiro brasileiro a ser distinguido pela Academia Sueca, mas apenas mais um. E que a Maria esteja lá na plateia, isto sim. Como uma homenagem a João Guimarães Rosa, ainda que tardia.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 10/05/2012
Reeditado em 21/01/2016
Código do texto: T3660604
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