COMPLETUDE

Ela chega em casa, joga as bolsas em cima da cama, corre para a gaveta de remédios e toma um calmante. Suportou com galhardia essa data tão dura. O trabalho distrai, mas, às vezes, más notícias podem surgir. E que má notícia!

Perder mais gente? Parece mentira, é inacreditável.

Ela se deita, sua mente voa até um tempo pretérito onde nada de tão ruim havia acontecido. Era superprotegida, tinha tudo e todos. Se era feliz? Risos, quem o é?

A vida foi jogando-a daqui para lá ao sabor do vento, dos acontecimentos. Muitas moradias, outra cidade, outras pessoas. Por dentro uma inquietude. Mas ainda assim era superprotegida e tinha tudo o que queria e gostava.

Por mais dura que a vida se apresentava, ela jamais deixara de ter as coisas das quais gostava e precisava para alimentar o espírito inquieto dos intelectuais.

Intelectual! O que é isso? É a porta do inferno já que, na vida, quem pensa sofre mais. Sim, ela era obrigada a admitir que a ignorância tem algo de ingenuidade, pureza, inocência. O ignorante não tem percepção, não tem capacidade de análise. Sofre bem menos.

Mas a intelectualidade é a droga do viciado. Há uma sede de saber, de conhecer, de sentir a partir do alimento cerebral. Isso pode até não fazer ninguém feliz, mas sacia a necessidade premente dos angustiados.

Ela olha ao redor de si e descobre que conquistou tudo pelo qual lutou a vida inteira: paz, sossego, filhos iguais à ela, livros e mais livros, Cds e mais Cds, DVDs em imensa quantidade. O alimento espiritual aliado à falta de necessidade. Sim, ela chegou aonde queria. Lutou muito, chorou muito, sofreu muito, fez das tripas coração, mas conseguiu. É uma vitoriosa! Não há como negar. E, como boa intelectual, anestesiou o coração.

Mas essa de hoje acabou com ela. Lá se vai mais um ser humano valioso. E os que estão ficando, sinceramente, é melhor que também fossem juntos.

Ela caminha lentamente em direção ao armário, pega algumas roupas e se dirige ao banho, como se pudesse lavar a tristeza da noticia. Novamente olha em volta e pensa: EU CONSEGUI! Não sou uma sobrevivente, sou uma vitoriosa. Nada e nem ninguém jamais poderá lhe tirar essa sensação de completude, de plenitude, de sucesso no que se propôs.

E tem, ao seu lado, dentro desses muros altos que separam sua vida do mundo, um pedestal, ou redoma se preferirem, onde os filhos e marido a mantém protegida.

Sim, ela tem tudo o que queria e conseguiu formar uma família, após muita luta, que a faz voltar ao tempo pretérito, onde vivia protegida do mal do mundo. É uma pena que o mal do mundo não respeita o muro, os protetores, a saciedade. Ele está ali, à espreita, para, como hoje, lhe mostrar que mais uma perda ocorrerá.

Mas mesmo assim, ela reafirma: Sou uma vitoriosa, jamais uma sobrevivente!

18 de maio de 2012 – 01:08 horas

Emar
Enviado por Emar em 18/05/2012
Reeditado em 18/05/2012
Código do texto: T3673854
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