O BIZARRO ANDARILHO

A estrada parecia não ter fim. Uma reta infindável.

Sobre aquele terrível calor, Gaspar caminhava desde o alvorecer. Para matar a sede resolveu sentar-se um pouco no barranco e descansar alguns minutos. Já avistara pássaros sobrevoando as cercanias de uma ponte, certamente iria encontrar água em abundância. Encostou seu bastão, apanhou o cantil e tomou a água restante. Calmamente apanha o umedecido e já encardido lenço da algibeira, retira o boné e tenta secar um pouco a calva, nuca e o rosto empoeirado.

Quinhentos metros a sua frente, a ponte. Com certeza iria aliviar um pouco daquela maldita canícula e aproveitar para lavar umas peças de roupas. Resolveu seguir adiante. Era sempre assim. Caminhava por caminhar. Não importava a direção. Precisava avançar, caminhar. Era como se na sua frente, existisse um desconhecido e mágico lugar, onde ele fosse encontrar a resposta para seus questionamentos.

Cinqüenta anos de mórbida existência. Há dez anos, largara família, um excelente emprego e pusera os pés na estrada. Sua louca atitude induzia seus amigos a se questionarem se era o excesso de estudos que o tinha transformado num errante.

Só ele sabia de seu problema. Sentia-se indigno de viver em comunidade. Seu crime: surrupiar da farmácia do hospital onde trabalhava, fortes opióides que serviam para aliviar sofrimentos de recém-operados ou pacientes terminais.

Não suportando mais se olhar no espelho pela manhã, resolveu sumir. Trocou de droga, optou pela bebida alcoólica. Fazia dez anos que expiava sua culpa a cada passo dado.

Sua bagagem era composta de uma mochila que carregava às costas, continha, em sacos plásticos, às doações recebidas nas cidades por onde passava. Pães velhos, carne seca, sal, frigideira, vidro contendo óleo e ainda, linhas e anzóis para garantir alimento através da pesca. Possuía também, algumas mudas de roupas. Roupas incrivelmente limpas. Nunca lhe faltava nada. Sempre encontrara almas caridosas que supriam suas carências. Sempre que possível, estava bem asseado. Detestava a sujeira. Dizia para si mesmo que a única sujeira que ainda ele admitia e não conseguia se livrar, era de sua mente.

Do lado direito da ponte, entrou por um carreirinho em declive que levava até uma pequena choça vazia, coberta de sapé, ao lado do rio. O abrigo da noite estava garantido. O aprazível lugar era arborizado e muito bonito. A trilha e a modesta edificação sinalizavam um rio piscoso. Em voz alta exclama:

— Peixinhos me aguardem! Mas, antes de matar a fome, vou “matar o bicho” e depois vou tomar um belo e refrescante banho.

Aproxima-se de uma frondosa árvore, retira a mochila e coloca-a sobre o gramado. Inicia seu costumeiro ritual. Observa as grossas e trêmulas mãos. Toma um generoso gole de cachaça, retira sua suada camisa e livra-se do borzeguim. Sente a conhecida e gostosa sensação de prazer ao deslizar os pés sobre a refrescante grama, depois de uma longa jornada como esta que tivera hoje. Retira do bolso o pedaço de fumo em rolo, canivete, palhas de milho para o cigarro. Sabe que em pouco tempo, alimentado pelo potente combustível alcoólico, sua mente estará excursionando velozmente para o estado desejável da pura felicidade, só possível no imaginário de um devaneador. Era delicioso, por alguns instantes, experimentar a ausência total das frustrações. Sentir-se livre das culpas, das carências afetivas, emocionais e materiais. Era lamentável, na sua opinião, que esta sensação, tão prazerosa, fosse efêmera.

Em pouco tempo, nu e já bastante alcoolizado, apanha o bastão e entra n’água, buscando conhecer a profundidade do rio. Na realidade, a súbita sensação depressiva que lhe surge após a ingestão abusiva de álcool, também lhe sugere a despreocupação com um eventual afogamento.

“Quem vai se importar se eu morrer?” — questiona-se com uma forte dosagem de autopiedade.

Ensaboa-se demoradamente com o sabão de coco, dá uns mergulhos e aproveita para lavar a roupa suja. Sente-se novinho em folha. Aquece-se ao sol, coloca uma bermuda limpa e resolve tirar um cochilo.

Dormiu e sonhou.

Acordou assustado. Com os olhos fixos no rio, refletiu sobre o sonho. Pela primeira vez nos últimos anos sentiu que sua mente não estava exalando um mau cheiro. Muito pelo contrário. Encheu-se de esperança. Acreditou ter encontrado a reposta que buscava há anos. Graças ao sonho paradoxal que tivera. Repentinamente, avistou um norte para sua vida. Jamais seria redimido se continuasse covardemente fugindo de si próprio e do mundo.

Sonhara com um menino de cabelos loiros encaracolados. O menino encontrou com um caminhante e perguntou:

— Moço existe muitas pedras no caminho do homem?

— Só as necessárias — responde o viandante.

— Pode-se evitá-las? – questiona o jovem

— Sim! Quando se pára de caminhar. — Foi a resposta do caminheiro que rapidamente retorna a caminhada.

26/08/2006

Luiz Celso de Matos
Enviado por Luiz Celso de Matos em 02/02/2007
Código do texto: T367593