Anacleto Morones, de Juan Rulfo, em Chão em chamas — Record
Velhas, filhas do demônio! Vi quando chegavam todas juntas, em procissão. Vestidas de negro, suando como mulas no meio do raio de sol. Vi-as de longe como se fosse uma récua levan­tando poeira. Suas caras já cinzentas de poeira. Negras, todas elas. Vinham pelo caminho de Amula, cantando entre rezas, entre o calor com seus escapulários negros e grandões e imundos sobre os quais caíam em gotonas o suor de suas caras.
Eu as vi chegando e me escondi. Sabia o que elas anda­vam fazendo e quem procuravam. Por isso me apressei a me esconder nos fundos do curral, correndo com as calças nas mãos.
  Mas elas entraram e deram comigo. Disseram: “Ave Maria Puríssima!”
  Eu estava acocorado numa pedra, sem fazer nada, só sentado ali com as calças caídas, para que elas me vissem daquele jeito e não chegassem perto. Mas só disseram: “Ave Maria Puríssima!” E foram se aproximando mais.
  Velhas descaradas! Deveriam ter vergonha! Persignaram-­se e se aproximaram até chegar ao meu lado, todas juntas, apertadas como num maço, jorrando suor e com os cabelos untados na cara como se tivesse chovido nelas.
    — Viemos ver você, Lucas Lucatero. Viemos lá de Amula, só para ver você. Pertinho daqui nos disseram que você estava em casa; mas não imaginamos que você estava tão assim, lá dentro; não neste lugar, nem nesses afazeres. Achamos que você tinha entrado para dar de comer às gali­nhas, por isso entramos. Viemos ver você.
Essas velhas! Velhas e feias feito chaga purulenta de burro!
  — Pois digam logo o que querem! disse a elas, en­quanto ajeitava as calças e elas tapavam os olhos para não ver.
  — Temos uma encomenda. Procuramos você em São Santiago e em Santa Inês, mas nos informaram que você não morava mais lá, que tinha se mudado para este rancho. E aqui estamos. Somos de Amula.
Eu já sabia de onde eram e quem eram; podia até ter recitado seus nomes, mas me fiz de desentendido.
  — Pois sim, Lucas Lucatero, enfim encontramos você, graças a Deus.
  Convidei-as a passar ao corredor e busquei umas cadei­ras para que se sentassem. Perguntei se estavam com fome ou se não queriam nem que fosse um jarro de água para re­frescar a língua.
  Elas sentaram, secando o suor com seus escapulários.
  — Não, obrigada disseram. Não viemos para in­comodar. Temos uma encomenda. Você me conhece, não é, Lucas Lucatero? me perguntou uma delas.
  — Acho que vi você em algum lugar disse eu. Você não é, por acaso, Pancha Fregoso, a que se deixou roubar por Homobono Ramos?
  — Sou eu, sim, mas ninguém me roubou. Isso foi pura maledicência. Nós dois nos perdemos procurando gabirobas. Sou Congregada e não teria permitido, de jeito nenhum,...
  — O que, Pancha?
  — Ah!, como você é mal pensado, Lucas. Até hoje não perdeu a mania de andar incriminando gente. Mas, já que você me conhece, quero tomar a palavra para comunicar o que viemos fazer.
  — Não querem mesmo um jarro d’água? tornei a perguntar.
  — Não se preocupe. Mas já que insiste tanto, não va­mos fazer desfeita.
  Trouxe para elas uma jarra de água de goiaba, e elas be­beram. Depois trouxe outra e tomaram a beber. Então trouxe um cântaro com água do rio. Deixaram o cântaro ali, à espe­ra, para daqui a pouco, porque, segundo elas, iam ficar com muita sede quando começassem a fazer a digestão.
  Dez mulheres, sentadas em fila, com seus vestidos ne­gros emporcalhados de terra. As filhas de Ponciano, de Emiliano, de Crescenciano, de Toribio da taverna e de Anastásio cabeleireiro.
  Velhas dos demônios! Nem uma só passável. Todas caí­das pela tabela dos cinquenta. Murchas feito damas-da-noi­te enrugadas e secas. Não tinha nem de onde escolher.
  — E o que procuram por aqui?
  — Viemos ver você.
  — Já me viram. Estou bem. Não se preocupem comigo.
  — Você veio parar muito longe. Neste lugar escondido. Sem domicílio e sem ter quem dê com o seu paradeiro. Foi muito trabalho até dar com você aqui, e isso depois de muito perguntar.
   Eu não me escondo. Vivo aqui do meu jeito, sem a moedeira das pessoas. E qual a missão que as traz aqui, se é que se pode saber? perguntei..
  — Pois se trata do seguinte... Mas não se preocupe em nos dar de comer. Já comemos na casa da Torcacita. Deram de comer para nós todas. Assim, pare de zanzar de lá pra cá. Sente-se aqui na nossa frente para a gente ver você e para que você ouça a gente.
  Eu não conseguia ficar em paz. Queria ir ao curral outra vez. Ouvia o cacarejar das galinhas e me dava vontade de ir buscar os ovos antes que os coelhos comessem.
  — Vou buscar ovos disse a elas.
  — Já comemos, de verdade. Não se preocupe com a gente.
  — É que tenho lá dois coelhos soltos que comem os ovos. Num instantinho estou de volta.
  E fui para o curral.
  Tinha pensado em não voltar. Sair pela porta que dava ao morro e deixar aquele bando de bruxas velhas plantado ali.
  Dei uma olhadinha no montão de pedras que estava en­costado numa quina e vi a figura de uma sepultura. Então desandei a esparramá-las, atirando-as por todo lado, fazen­do um regueiro aqui e outro acolá. Eram pedras de rio, abolotadas, e dava para jogá-las longe. Velhas de mil judas! Tinham me botado para trabalhar. Não sei o que deu nelas para quererem vir.
  Abandonei a tarefa e regressei.
  Dei os ovos de presente para elas.
  — Você matou os coelhos? Vimos quando jogava pedras neles. Guardaremos os ovos para daqui a pouco. Você não devia ter se preocupado.
  — Aí, no meio dos seios, eles podem chocar, é melhor deixá-los longe.
  — Ai, como você é, Lucas Lucatero! Não perde essa mania de ser falador. Pois nem se a gente estivesse ardendo...
  — Sei lá como é que vocês estão. Mas está fazendo um calorão aqui fora.
  O que eu queria mesmo é espichar a conversa mole. Le­var as mulheres por outros rumos, enquanto procurava um jeito de botá-las para fora de casa e sem vontade de voltar. Mas não me vinha nenhuma ideia.
Sabia que andavam me procurando desde janeiro, assim que se soube da desaparição de Anacleto Morones. Não fal­tou quem me avisasse que as velhas da Congregação de Amula andavam atrás de mim. Eram as únicas que podiam ter algum interesse em Anacleto Morones. E agora, ali esta­vam elas.
   Podia continuar jogando conversa fora ou engabelando­-as de alguma forma até que a noite chegasse e elas tivessem que ir embora. Não correriam o risco de passar a noite na minha casa.
Porque houve um momento em que se tratou da questão: quando a filha de Ponciano disse que queriam liquidar logo seu assunto para voltar cedo para Amula. Foi quando eu as fiz ver que não se preocupassem com isso, porque nem que fosse no chão havia ali esteiras de sobra para todas. Todas disseram que isso sim que não, porque o que as pessoas iriam dizer quando ficassem sabendo que passaram a noite sozi­nhas na minha casa e comigo lá dentro? Isso sim que não.
  A questão, pois, estava em esticar a conversa, até que a noite caísse, tirando da cabeça delas a ideia que bulia lá dentro.
  Perguntei a uma delas:
  — E o seu marido, o que diz?
  — Eu não tenho marido, Lucas. Você não se lembra que fui sua noiva? Esperei e esperei por você e por você fiquei esperando. Depois fiquei sabendo que você tinha casado. Naquela altura, ninguém mais me queria.
  — E eu? O que aconteceu foi que outros assuntos pas­saram na frente e me mantiveram ocupado; mas ainda é tempo.
  — Mas se você é casado, Lucas, e nada menos que com a filha do Santo Menino! Para que ficar me alvoroçando de novo? Eu até já esqueci de você.
  — Mas eu, não. Como foi mesmo que você disse que se chamava?
  — Neves... Continuo me chamando Neves. Neves Carda. E não me faça chorar, Lucas Lucatero. Só de me lem­brar de suas promessas melosas me dá vergonha.
  — Neves... Neves. Não tem como eu me esquecer de você. Se você é das que ninguém esquece... Você é sua­vezinha. Bem me lembro. O cheiro do vestido que você usa­va para me ver cheirava a cânfora. E você se encolhia grudadinha em mim. E grudava tanto que eu quase sentia você entre meus ossos. Bem me lembro.
  — Não fica falando essas coisas, Lucas. Ontem mesmo eu me confessei e você está despertando maus pensamentos e jogando pecado em cima de mim.
  — Lembro que beijava você na dobra atrás dos joelhos. E que você dizia que ali não, porque sentia cócegas. Você ainda tem covinhas atrás dos joelhos?
  — É melhor você calar a boca, Lucas Lucatero. Deus não há de perdoar o que você fez comigo. Você vai pagar caro.
  — Fiz alguma coisa errada com você? Por acaso tratei você mal?
  — Tive que tirar. E não me faça dizer isso aqui na fren­te de todo mundo. Mas só para você ficar sabendo: precisei tirar. Era uma coisa assim parecida com um pedaço de car­ne de sol. E para que eu ia querer ele, se o pai não passava de um folgazão?
  — Quer dizer que isso aconteceu? Eu não sabia. Não querem um pouquinho mais de refresco de goiaba? Não de­moro nadinha em preparar. Esperam um bocadinho.
 
Juan Rulfo
Enviado por Germino da Terra em 19/05/2012
Reeditado em 19/05/2012
Código do texto: T3676078
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