Anacleto Morones (parte III), de Juan Rulfo, em Chão em chamas — Record
Escuta, Francisca, agora que todas foram embora, você vai ficar para dormir comigo, não vai?
  — Nem se Deus mandasse. O que as pessoas iriam pen­sar? O que eu quero é convencer você.
  — Pois vamos nos convencendo nós dois. Afinal, o que você tem a perder? Já está velha, ninguém vai cuidar de você, e não tem quem faça o que vou fazer, nem que seja por favor.
  — Mas é que depois vem a faladeira do pessoal. Depois ficam pensando mal.
  — Pois que pensem o que quiserem. Dá na mesma. E seja como for, você é você.
  — Bom, eu vou ficar. Mas é só até que amanheça. E isso, se você me prometer que vamos chegar juntos a Amula, para que eu possa dizer a elas que passei a noite implorando e implorando. Se não, como é que eu faço?
  — Está bem. Mas antes quero que você corte esses pe­los do bigode. Vou trazer a tesoura.
  — E você ainda caçoa de mim, Lucas Lucatero. Passa a vida vendo meus defeitos. Deixa meu bigode em paz. Assim ninguém vai suspeitar.
  — Está bem. Como você quiser.
  Quando escureceu, ela me ajudou a arrumar o telheiro das galinhas e juntar outra vez as pedras que eu tinha esparramado pelo curral inteiro, amontoando-as no canto onde estavam antes.
  Nem imaginou que Anacleto Morones estava enterrado ali. Nem que tinha morrido no mesmo dia em que fugiu da cadeia e veio até aqui reclamar as propriedades de volta. Chegou dizendo:
  — Vende tudo e me dá o dinheiro, porque preciso fazer uma viagem para o norte. De lá eu escrevo e a gente volta a fazer negócios juntos, nós dois.
  — E por que você não leva a sua filha? respondi. É a única coisa que sobra de tudo que tenho e que você diz que é seu. Até eu fui enrolado pelas suas manhas malvadas.
  — Vocês irão depois, quando eu mandar avisar do meu paradeiro. E lá a gente acerta as contas.
  — Seria muito melhor acertar de vez. Para ficar uma vez mano a mano.
  — É que agora mesmo eu não estou de brincadeira me disse ele. Então, me dá o que é meu. Quanto de di­nheiro você tem guardado?
  — Alguma coisinha, mas não vou dar nada. Vivi que nem Caim com a sem-vergonha da sua filha. Considere-se pago e bem pago só por eu sustentar essa mulher.
Ficou valente. Pisava duro no chão e estava com pressa de ir embora...
  “Descanse em paz, Anacleto Morones”, disse a ele quan­do o enterrei, e a cada volta que eu dava até o rio carregando pedras para jogar em cima dele: “Daqui você não sai, nem todas as suas tretas.”
  E agora a Pancha me ajudava a pôr outra vez o peso das pedras, sem suspeitar que ali embaixo estava Anacleto e que eu fazia aquilo de medo de que saísse da sepultura e viesse de novo me atazanar. Manhoso do jeito que era, eu não duvi­dava de que ele encontrasse um jeito de reviver e sair dali.
  — Ponha mais pedras, Pancha. Amontoa elas neste can­to, não gosto de ver meu curral cheio de pedras espalhadas.

Depois ela me disse, já de madrugada:
  — Você é uma calamidade, Lucas Lucatero. Você não é nada carinhoso. Sabe quem era amoroso com a gente?
  — Quem?
  — O Menino Anacleto. Ele sim, sabia fazer amor.
 
Juan Rulfo
Enviado por Germino da Terra em 19/05/2012
Código do texto: T3676103
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