Uma noite no hipermercado (maio de 2012)

Gotas de chuva escorriam por todos os lados do abrigo do ponto de ônibus. Chovia e ventava forte. Manuela sentia a chuva que vinha de todos os lados – do céu, das poças de lama no asfalto (que levantavam voo com o passar dos carros), do vento tão forte que chegava a doer seus braços e pernas nus – sentia-se literalmente lavada, encharcada, pela chuva diluvial.

A chuva havia muito tinha subido até o nível da calçada e, de todos os passageiros (ao menos os costumeiros naquele ponto), Manuela era a última: encharcada e com muito frio, o último ônibus 152 que pegaria para chegar à sua casa termina por não parar no ponto. De sobra, ainda levanta uma enorme onda; o que levou a água suja dos bueiros até os joelhos da moça.

Passava-se das nove horas da noite e Manuela tentava, cansada, retornar para casa depois de uma longa jornada de trabalho. Trabalhava em uma loja de móveis, regularmente, das oito da manhã às oito horas da noite. Em dia como estes, de muita chuva, era sempre muito difícil para voltar para casa. Os ônibus não paravam no ponto, e todo o resto era sempre um dilúvio.

Manuela avistou do outro lado da avenida o hipermercado – onde, aparentemente, um grupo de pessoas refugiava-se da chuva debaixo de uma ampla marquise. Era o que precisava Manuela: para escapar da humilhação de ver-se molhada pela água projetada pelos carros e pelos ônibus que passavam, haveria de atravessar a rua e juntar-se às pessoas do outro lado.

Manuela espichou as canelas, puxando e repuxando até os joelhos as pernas de seus jeans e, com coragem, cruzou o asfalto todo inundado. Depois de algum esforço chegou ao outro lado, onde se encontrava a marquise, que protegia a todos parcialmente – havia a chuva de vento, que era o pior, molhando a todos de uma forma ou de outra. Não havia como escapar da água.

Os bueiros entupidos pela sujeira levada em enxurrada fez com que o nível de água na rua aumentasse consideravelmente. Do jeito que estava o tempo, a chuva sem tréguas não tardaria muito para transbordar da rua, lambendo a calçada, e descendo para o nível inferior. Sendo assim, o estacionamento do hipermercado logo estaria inundado com a água da rua.

Neste meio tempo, um ônibus parou na esquina e, com ele, foram embora todos os que se escondiam da chuva debaixo da marquise do hipermercado. Não sobrou nenhuma pessoa, exceto Manuela. Observando o outro lado, o ponto de ônibus de onde veio e onde pararia o seu transporte para casa, tudo era água e lama, mas nenhum sinal de ônibus na longa avenida.

Olhou no relógio de pulso e viu que faltavam poucos minutos para as dez horas da noite. Logo, a enxurrada de lama e entulhos da rua ameaçariam seu equilíbrio – em cima de uma pequena pedra e escorada em uma palmeira chinesa na entrada do hipermercado – mas o que fazer? Ficar ali seria, sem dúvidas, perigoso. Àquela hora, sozinha, corria até o risco de ser assaltada.

Manuela então se esgueirou pelo portão de entrada e entrou no hipermercado através do estacionamento. Subiu a escada rolante que levava para o interior do prédio e, caminhando pelo espaço por trás dos caixas, entrou no toalete. No banheiro, se escondeu em um reservado e trancou a porta – ficando de cócoras sobre o sanitário para garantir que ninguém a veria ali.

Do lado de fora do toalete a chuva caía ruidosamente. O impacto das gotas com as telhas do hipermercado fazia o ruído de uma metralhadora. Era chegado o momento de fechar, o alto-falante informou: “Por favor, senhoras e senhores, a loja fecha suas portas dentro de aproximadamente quinze minutos. Por favor, pede-se que todos se dirijam para os caixas.”

Tremendo de frio, Manuela balouçava de um lado para o outro no reservado, encima do sanitário. Seu fiel relógio de pulso marcava dez horas da noite. Em breve, seria certamente a única pessoa dentro do hipermercado. Foi neste momento que, abrindo a porta do banheiro, alguém entrou e acendeu a luz. Manuela prendeu a respiração. Quem seria?

Perguntou um sujeito, em voz alta, “Há alguém aí?” Depois, caminhou de um lado ao outro, mas não desconfiou que Manuela pudesse se esconder lá, em um dos reservados do banheiro feminino. Deu a volta até a porta e, depois de apagar a luz, foi embora. Ao perceber que o funcionário havia se retirado, Manuela recuperou o fôlego e respirou aliviada.

Agora no escuro, mas finalmente com os pés no chão frio de seu reservado, Manuela esperava o momento de sair dali. O relógio, iluminado no escuro pela pequena luz do mostrador, marcava dez horas e meia. Do lado de fora da toalete, ainda se ouvia algumas vozes e um ruído metálico indicava que as portas do hipermercado estavam sendo fechadas.

Manuela pôs-se silenciosamente de pé e saiu do reservado caminhando vagarosamente. Retiradas as sandálias encharcadas de chuva – para melhor locomover-se sem fazer barulho – foi até a porta tateando no escuro. O silêncio do lado de fora era sinal de que podia aventurar-se na loja sem ser vista. Daí por diante, o hipermercado seria cada vez mais só silêncio.

Mas, – o que poderia frustrar-lhe o plano de refugiar-se da forte chuva ali, dentro de uma loja vazia – seria um vigia noturno. Por isso, Manuela teria de contar com a própria astúcia e com toda a sua sorte. Abriu uma pequena greta da porta do banheiro para poder espiar e, não vendo ninguém do lado de fora, resolveu sair imediatamente.

Descalça, correu entre as seções de gêneros alimentícios, padaria e produtos de limpeza – chegando ao que seria uma grande cama arrumada, da seção de produtos de decoração para o lar. Manuela não pensou duas vezes e, deitando na cama quentinha, com grandes edredons entremeados por enormes almofadas, fechou os olhos e dormiu um sono profundo.

“Moça! moça! Não pode dormir aqui!” Acordou assim, sob o olhar assustado de um velhinho de oitenta e tantos anos de idade. Era o vigia, trazendo-lhe uma ordem de despejo e, em conjunto, a manhã que chegara havia pouco tempo: o relógio de pulso marcava sete horas da manhã – o que averiguou a ainda sonolenta Manuela torcida na grande cama com almofadas.

Levantou-se provavelmente tão assustada quanto o vigia e, calçando as sandálias ainda úmidas da noite anterior, zás-trás pôs-se a caminhar para a porta de entrada. O vigia, assegurando-lhe que abriria o lugar para os consumidores em cerca de uma hora, abriu a porta da frente do estabelecimento. Ela, entre mil desculpas, envergonhada, despediu-se e sumiu.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 21/05/2012
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3680416
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