O Jardim

- Tá de alta!

- já?

- já

- então tá.

- tá.

- posso ir?

- humrrum...

Desequilibrou-se novamente enquanto jogava o corpo para o lado e outro, como uma montagem oscilante. Refez os papéis sobre a mesa e empilhou cada pedaço de anotação, apertando a mão contra a caneta. No jardim, a enfermeira, irritada com o barulho das muletas, pedia silencio à vendedora de fitinha de São Francisco do local, que tentava fugir lentamente daquele inferno. No canto, dois discutiam a aposta de cigarros e uma maquiava-se insistentemente ao ver os homens.

- Dr. Lúcio, posso chamar o próximo?

- Sim...sim..sim.

Ajeitava-se dentro da bata branca encardida do banco do jardim ao ser vez por outra surpreendido por um novo paciente.

- Sente-se, pois não.

A enfermeira reclamava:

- O senhor não pode ficar ai. Venha pra dentro, Dr. Lúcio.

- Fale direito comigo, sou doutor.

Mais e mais pacientes aproximavam-se até a noite chegar e Dr. Lúcio adormecer no meio do jardim por cima das anotações do dia. Eram rabiscos de poesias criadas entre uma consulta e outra e repetidas incessantemente.

“Passarinho bonitinho, amarelinho, de biquinho rosadinho, esperando dias e dias por um dono bem riquinho”.

Dr. Lúcio levantou-se assustado após ouvir os gritos da enfermeira pedindo silêncio. Retomou cada passo de sua função após molhar o rosto e reposicionar a bata branca. Ali mesmo, retornava ao seu local de trabalho, e era assim solitário há alguns anos desde a morte da filha.

- tá de alta...

- já?

- já

- então tá.

- tá.

- posso ir?

- humrrum...

No dia, decidiu consultar somente crianças para relembrar a morte da filha caçula. Às vezes perdia o controle e desesperava-se com o choro da menininha sufocando o seu ouvido. Ainda podia sentir a pele fria em seus braços cansados.

- Minha filhinha não me deixa...Acorda! Acorda! Acorda, minha menininha!

Rabiscava o chão com um giz. Escrevia as cinco letras de Luzia sua filha.

- filhinha, cê tá de alta...filhinha?

Misturavam-se os pensamentos confusos, enquanto os pacientes conversavam entre si e amontoavam-se ao seu redor. Um grito formava-se no seu interior à medida que três ou quatro loucos eram jogados no chão, amarrados e arrastados para o quarto branco. A lembrança da filha retomou o espaço e a força do braço apertou seguramente o pescoço da menina. Preocupou-se com a pressa das crianças e com o tropeçar dos passos curtos acelerados. A enfermeira gritava e gritava pedindo silêncio no jardim e, antes de tirar a roupa para chamar a atenção do Dr. Lúcio, beliscou os pacientes até ser contida e devorada pelos canibais do jardim; os homens eram sorvidos pela fumaça dos cigarros e a vendedora enroscava-se em cada colorido das fitinhas. No mesmo instante, Dr. Lúcio tentou esconder-se atrás da árvore para concluir ofegantemente sua última poesia do dia que acabara de ouvir, até que as mãos arroxearam-se de tão apertadas e grudaram-se nas costas pela camisa de força.

“menininha bonitinha, amarelinha, de biquinho rosadim esperando dias e dias seu enterro no jardim...”

David Cid
Enviado por David Cid em 02/06/2012
Código do texto: T3701780